Publicado em 30/05/2016

Lisofosfatidilcolina está aqui, lá e em todo lugar

Existem hoje aproximadamente 10 milhões de pessoas infectadas no mundo pelo parasita Trypanosoma cruzi , agente etiológico da Doença de Chagas. Sendo uma das patologias que mais afeta a população no continente americano, principalmente na América Latina, a Doença de Chagas é considerada um problema de prioridade da saúde pública.

Em 19 de Fevereiro deste ano, um grupo de três pesquisadores da UFRJ publicou um trabalho intitulado Here, There, and Everywhere: The Ubiquitous Distribution of the Immunosignaling Molecule Lysophosphatidylcholine and Its Role on Chagas Disease", no periódico Frontiers in Immunology que investigou o papel de uma molécula de imunosinalização conhecida como lisofosfatidilcolina na Doença de Chagas. Dois professores associados do IBqM assinam o trabalho: a Profa. Georgia Atella, chefe do laboratório de Bioquímica de Lipídeos do IBqM e o Prof. Mario Silva-Neto, chefe do laboratório de Sinalização Celular.

O estudo visou reunir os principais dados na literatura que demonstram que essa molécula está envolvida em vários eventos fisiológicos, exercendo um importante papel em condições patológicas. Os cientistas avaliaram também a distribuição desse fosfolipídeo na natureza que, curiosamente, está presente tanto na saliva do inseto vetor da Doença de Chagas como no plasma do paciente.

Mas o que é a lisofosfatidilcolina e como ela atua para a patogênese da Doença de Chagas?

A lisofosfatidilcolina é basicamente um glicerofosfolipídeo que é produzido nas membranas celulares como um produto metabólico da fosfatidilcolina.

Como dito anteriormente, essa molécula é encontrada no plasma humano e também está presente na saliva do inseto transmissor da Doença de Chagas. O que acontece é que, ao se alimentar de sangue, o inseto injeta sua saliva no hospedeiro, tornando o processo de infecção pelo parasita causador da doença ainda mais eficiente. Isso acontece especialmente porque a lisofosfatidilcolina inibe a produção do microbicida óxido nítrico, que é estimulada por macrófagos do sistema imunológico. Essa molécula bioativa tem sido apontada como um novo marcador da Doença de Chagas, atuando como um importante mediador nos processos biológicos da doença.

A lisofosfatidilcolina é um dos principais lisofosfolipídeos presentes na saliva e fezes do Rhodnius prolixus, principal organismo vetor da doença. Descobriu-se que além de papel anti-hemostático, inibindo a agregação plaquetária, a lisofosfatidilcolina também é uma molécula imunomoduladora e facilita a colonização do parasita ao modular as reações imunológicas do organismo.

Durante a hematofagia, células de defesa do organismo são atraídas para o local da picada, a lisofosfatidilcolina por sua vez, é capaz de aumentar a produção de cálcio intracelular nos macrófagos, o que permite e facilita invasão do T. cruzi, potencializando sua infecção. É importante ressaltar que esse lipídeo pode não ser reconhecido pelo organismo do hospedeiro como um patógeno, já que a estrutura química da molécula presente no inseto e plasma humano é a mesma.

O estudo sugere que o T. cruzi possivelmente estimula as células a produzirem mediadores que provoquem um tipo de resposta inflamatória no local da picada. Essa resposta inflamatória é caracterizada pela produção de citocinas como TNF-a, IFN-y e IL-12, assim como a atuação das células NK (natural killer), dendríticas e macrófagos que atuam no controle inicial da replicação parasitária. O estudo afirma que a própria reação inflamatória pode ser uma das principais causas dos danos nos tecidos e disfunção de certos órgãos do organismo do paciente.<

''Aqui, lá e em todo lugar''
Os autores se inspiraram na famosa canção dos Beatles "Here, there and everywhere" do disco Revolver lançado em 1966, que está fazendo 50 anos esse ano, sendo esse o motivo da escolha do título para o artigo, além do principal fato de o título da música mostrar como é a distribuicão da lisofosfatidilcolina na natureza, ou seja, ela está presente em todos os lugares.

Na infecção em Leishmaniose, por exemplo, os macrófagos formam, via endocitose, um vacúolo parasitóforo que abriga o parasita. E é dentro desse vacúolo que ele irá viver e se multiplicar. Os cientistas observaram através de uma análise fosfolipídica que, quando comparado à macrófagos normais, os macrófagos infectados por Leishmania tinham seus níveis de lisofosfatidilcolina aumentados.

Essa molécula ainda foi apontada como um modulador negativo na produção de óxido nítrico e, segundo o estudo, é possível que a remodelação do vacúolo parasitóforo induzida por Leishmania, possa controlar a produção microbicida e proteger o parasita. Eles também viram que a lisofosfatidilcolina é capaz de aumentar seletivamente a expressão da enzima arginase1 em 365%, o que aumenta a proliferação dos parasitas. Isso ocorre concomitantemente à uma supressão da ativação da iNOS (óxido nítrico sintase induzível), mantendo os níveis de óxido nítrico baixos nas células infectadas e levando ao esgotamento de GSH (glutationa, um anti-oxidante) em células invadidas, induzindo ao estresse oxidativo.

Também foi avaliado o papel da lisofosfatidilcolina em Tripanossomíase humana africana ou Doença do Sono, uma infecção causada pelo parasita Trypanosoma brucei, que ataca o sistema nervoso central e é transmitida por moscas tsé-tsé. Em pessoas infectadas, a quantidade de lisofosfatidilcolina era significativamente menor comparada a quantidade nas pessoas não infectadas. Possivelmente, isso pode indicar que embora o parasita sintetize a lisofosfatidilcolina de novo, como é conhecido, ele também elimina diversos lipídeos do hospedeiro, se necessário.

Cobras e insetos também possuem a lisofosfatidilcolina em sua saliva, que possivelmente devem exercer importantes funções para a caça.

O inseto Belostoma anurum, por exemplo, consegue imobilizar a presa injetando sua saliva, que contém 25% de lisofosfatidilcolina da porcentagem total dos fosfolipídeos presentes. Além disso, esse lipídeo também é capaz de ajudar na digestão de presas maiores que o próprio inseto, como anfíbios. Em peixes-zebra, foi comprovado a atividade paralítica da lisofosfatidilcolina, evidenciando que essa molécula pode sim ser importante na imobilização das presas pelos predadores.

Podemos considerar que o estudo da lisofosfatidilcolina pode nos ajudar a compreender melhor o potencial e atividades da molécula, servindo para investigação e entendimento dos mecanismos moleculares presentes nessas doenças.

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Convidamos os autores para responderem duas questões sobre o trabalho, leia a seguir.

 PORTAL BIOQMED. Os seres humanos possuem a lisofosfatidilcolina, assim como os insetos. A estrutura química dessa molécula é igual nos dois organismos? Em que isso poderia implicar na infecção parasitária?

PROFESSOR MARIO SILVA NETO. Sim. Esse é exatamente o ponto ao longo da evolução do processo hematofágico, os insetos chupadores de sangue usaram vários mecanismos para burlar nossa bioquímica e farmacologia. Em alguns casos eles simplesmente ""imitam" moléculas sinalizadoras que no dia a dia coordenam nossas atividades biológicas. No caso da lisofosfatidilcolina, ela é um lipídio bioativo que tradicionalmente regula algumas atividades hemostáticas e imunes. Os protozoários patogênicos caminham na mesma linha utilizando a mesma lisofosfatidilcolina para subverter o sistema imune. Como na saliva e nas fezes do vetor, o parasita e o plasma do hospedeiro vertebrado possuem lisofosfatidilcolina, então fica fácil imaginar o que acontece. Ou seja, aumento da infecção.

PORTAL BIOQMED.  A lisofosfatidilcolina tem propriedades imunosupressoras e sua presença pode contribuir para o sucesso da infecção. A inibição dessa molécula pode afetar de alguma forma os processos de infecção?

PROFESSOR MARIO SILVA NETO. Sim, é o que estamos tentando fazer agora com o desenho de peptídeos seletivos em colaboração com o Dr. Akira Sato, da Iwaki Meisei University em  Fukushima no Japão. Os primeiros resultados foram muito promissores e fizeram parte da tese de Mestrado da aluna Bruna Iaciura, daqui do IBqM de Meis.

Recomendamos fortemente a leitura do artigo "Here, There, and Everywhere: The Ubiquitous Distribution of the Immunosignaling Molecule Lysophosphatidylcholine and Its Role on Chagas Disease" no site do periódico através do endereço eletrônico: http://journal.frontiersin.org/article/10.3389/fimmu.2016.00062/abstract

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Formato para citação:
* Silva-Neto MA, Lopes AH, Atella GC. Here, There, and Everywhere: The Ubiquitous Distribution of the Immunosignaling Molecule Lysophosphatidylcholine and Its Role on Chagas DiseaseFront Immunol. 2016 Feb 19;7:62. doi: 10.3389/fimmu.2016.00062. eCollection 2016. Review. PubMed PMID: 26925065; PubMed Central PMCID: PMC4759257.

Por Larissa Haerolde e Francisco Prosdocimi para o portal BIOQMED.