Publicado em 18/11/2015

Vias de sinalização em Leishmania amazonensis

Em um artigo publicado no dia 12 de Junho deste ano pela principal revista do grupo PLoS, a PLoS ONE, um grupo liderado pelo Prof. José Roberto Meyer-Fernandes demonstrou que os agentes etiológicos da leishmaniose geram peróxido de hidrogênio durante sua fase de crescimento e que isso produz um aumento da atividade da sódio/potássio ATPase no parasito. Estudando protozoários da espécie Leishmania amazonensis, que pertencem à família dos tripanosomatídeos e que são os principais agentes etiológicos da Leishmaniose, os pesquisadores do IBqM investigaram o papel do peróxido de hidrogênio (H202) gerados na presença do grupo heme, na atividade da Na+/K+ ATPase do organismo. Os pesquisadores mostraram que concentrações altas do grupo heme, encontrado no sangue dos mamíferos, estimulou a produção de H202 pela mitocôndria das Leishmanias, possivelmente atuando também para promover o crescimento dos parasitos. A compreensão das vias de sinalização em parasitos tem importância fundamental no estudo mais aprofundado de seu metabolismo e de formas de combatê-lo.

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Por Larissa Haerolde para o PORTAL BIOQMED.

PORTAL BIOQMED. Qual a importância de estudarmos as vias de sinalização em parasitos do genêro Leishmania? Por que o grupo heme é importante como molécula sinalizadora?

PROFESSOR JOSÉ ROBERTO: O conhecimento das vias de sinalização do parasito possibilita um maior entendimento sobre sua biologia, forma de vida e desenvolvimento, auxiliando estudos futuros que envolvam interação com seus  hospedeiros, como por exemplo o homem e outros mamíferos e, futuramente, a  pesquisa de fármacos mais eficientes no combate da leishmaniose.

O heme é uma molécula proveniente da degradação da hemoglobina, principal proteína presente nos glóbulos vermelhos do sangue. O vetor da leishmaniose, o flebotomíneo, é um inseto hematófago, e por esse motivo a forma promastigota do parasito, encontrada no intestino do inseto vetor, está constantemente exposta às moléculas de heme provenientes do metabolismo do inseto. Em tripanossomatídeos já foi descrito o envolvimento da molécula de heme na proliferação, diferenciação e infectividade.

 

PORTAL BIOQMED. Qual a função do peróxido de hidrogênio gerado na presença do heme na atividade da ATPase de sódio e potássio? Qual a importância metabólica de se estudar essa molécula em especial? Como o H2O2 está envolvido na ativação dessa ATPase?

PROFESSOR JOSÉ ROBERTO: O peróxido de hidrogênio é considerado uma espécie reativa de oxigênio (ERO). As moléculas pertencentes a este grupo são altamente reativas e em altas concentrações são capazes de se combinar com lipídeos, proteínas e DNA, trazendo efeitos deletérios a esses componentes celulares. O peróxido pode ser gerado naturalmente de diversas formas nas células, como por exemplo, a partir da ação de enzimas tais como as NADPH oxidases, mieloperoxidases e outras, ou ainda pela mitocôndria como subproduto da respiração celular. Por muitos anos, pensava-se que esta molécula estava relacionada apenas a danos celulares devido a geração de estresse oxidativo. No entanto, estudos recentes demonstram que o H2O2, em baixas concentrações, pode desempenhar um papel chave na transdução de sinal intracelular através da ativação/inativação reversível do sítio ativo de várias enzimas. Ainda não sabemos ao certo como este peróxido é gerado na presença do heme, contudo, através de nossos estudos, verificamos que o H2O2 não é capaz de ativar a sódio/potássio ATPase diretamente, mas sim através da ativação de uma proteína quinase C. Essa enzima também chamada de PKC atua na adição de grupamentos fosfatos em resíduos de serina/treonina em diversas outras proteínas, estimulando-as ou inibindo-as deste modo. Essas quinases são conhecidamente ativadas na presença de peróxido de hidrogênio. A sódio/potássio ATPase em Leishmania está envolvida na regulação osmótica da célula, ou seja, na regulação dos níveis ideais de sódio e potássio no seu interior. Assim, o peróxido de hidrogênio proveniente da sinalização pelo heme estaria envolvido na homeostase iônica celular em Leishmania.

PORTAL BIOQMED.  Foi demonstrado que o aumento de concentração da molécula heme pode promover aumento da produção de peróxido de hidrogênio (H2O2) em promastigotas (forma morfológica e funcional do parasita, que vive no trato digestivo do inseto vetor) de L. amazonensis. Como podemos saber se esse aumento foi causado exclusivamente pelo heme? O senhor poderia nos explicar como a atividade do heme poderia contribuir para o nível elevado de H2O2?

PROFESSOR JOSÉ ROBERTO: Esse mecanismo de sinalização parece ser exclusivo da molécula de heme, pois testamos também um precursor do heme, a protoporfirina IX e dois análogos com metais diferentes: cobalto protoporfirina e estanho protoporfirina, que ao invés do ferro apresentam cobalto ou estanho no interior do anel porfirínico, e outras duas moléculas  que são produtos de degradação do heme, a bilirrubina e a biliverdina. Nenhum desses compostos foi capaz de promover um aumento na geração de H2O2 em promastigotas de L. amazonensis, somente a molécula de heme. Apesar desses resultados, outras investigações são necessárias para explicar como ocorre a sinalização por heme. Não sabemos se a molécula se liga (i) a um receptor localizado na membrana plasmática das células ou se (ii) ele é transportado para o interior da célula, porém vimos que a mitocôndria está envolvida no aumento da geração de H2O2 induzido por heme. Nossos estudos indicam que o heme não é o produtor direto de peróxido de hidrogênio na célula, mas sim uma molécula sinalizadora que seria responsável pelo início da via de sinalização que culminaria na ativação da sódio/potássio ATPase.

 

PORTAL BIOQMED. Com o uso do parasita Leishmania amazonensis, seu grupo demonstrou que a ativação da Na+/K+ ATPase acontece através de uma cascata de sinalização que inclui a proteína quinase C (PKC) e o grupo heme, como essa ativação é estimulada?

PROFESSOR JOSÉ ROBERTO: As PKCs são descritas comumente como sendo ativadas por diacilglicerol, um tipo de glicero-lipídeo, que em conjunto com o cálcio intracelular atuam na mudança de conformação dessas enzimas, tornando-as ativas. A ativação das PKCs por peróxido de hidrogênio é um tipo de mecanismo que vem sendo descrito mais recentemente. Sabe-se que a presença de resíduos de cisteínas, um aminoácido sensível a oxidação por ERO, no domínio regulatório, faz com que estas enzimas tornem-se enzimaticamente ativas na ausência de diacilglicerol e cálcio. Pouco se sabe sobre as concentrações de EROs que levariam a esse tipo de ativação, quais espécies reativas estariam envolvidas e qual seria a especificidade dessas enzimas para este tipo de ativação. Nossos resultados mostram uma via de sinalização ativada por heme, que leva a um aumento na produção de H2O2. Esta espécie reativa de oxigênio está envolvida na ativação da PKC, que por sua vez é capaz de modular a atividade Na+/K+ ATPásica. É a primeira vez que este tipo de mecanismo é descrito em uma PKC de Tripanossomatídeos.

 

PORTAL BIOQMED. A PKC está envolvida numa variedade de sinais intracelulares. Ela aumenta na presença de H2O2, certo? Qual o papel da PKC nessa via de sinalização?

PROFESSOR JOSÉ ROBERTO: Como dissemos anteriormente, a ativação das PKCs por peróxido de hidrogênio é um tipo de mecanismo que vem sendo descrito mais recentemente.  Nós recomendamos a leitura de uma revisão escrita por nós e publicada no final de 2012, intitulada “Cell signaling through protein kinase C oxidation and activation” por Daniela Cosentino-Gomes, Nathalia Rocco-Machado e José Roberto Meyer-Fernandes (International Journal for Molecular Sciences. 2012;13(9):10697-10721).

 

PORTAL BIOQMED. Os resultados do seu artigo mostraram que houve uma intensa geração de H2O2 nos primeiros dias de proliferação de células de Leishmania amazonesis, diminuindo ao longo dos dias e alcançando níveis mínimos quando as células atingiam a fase estacionária de crescimento. Qual o papel do H2O2 na proliferação de células desse parasito?

PROFESSOR JOSÉ ROBERTO: A produção de peróxido de hidrogênio está relacionada com a proliferação celular não só em parasitos como a Leishmania, mas também em células de mamíferos e outros organismos como fungos e leveduras. É provável que estas altas concentrações de H2O2 no início da proliferação estejam relacionadas a um aumento do metabolismo celular, que passa a consumir mais oxigênio com objetivo de produzir mais energia, possibilitando assim a divisão celular. Como dito anteriormente, o H2O2 é considerado um subproduto da respiração celular, mas também pode ser produzido por outras fontes para atuar como molécula sinalizadora. Existem diversas vias que poderiam estar atuando na proliferação destas células, porém o mecanismo pelo qual o peróxido estaria envolvido ainda não foi desvendado. Novos estudos ainda são necessários neste sentido.

 

PORTAL BIOQMED. Entendemos que o trabalho do seu grupo esteja querendo conhecer mecanismos básicos regulatórios em Leishmania, porém há alguma relação com a clínica da doença que poderia ser proposta com relação a esse mecanismo?

PROFESSOR JOSÉ ROBERTO: Nossos estudos são de biologia básica deste organismo. Porém, mesmo sendo básica, constitui um pedaço do quebra-cabeças que nós cientistas tentamos desvendar a respeito destes organismos patogênicos. Esse conhecimento, em conjunto com outros trabalhos podem levar ao desenvolvimento de novos fármacos que visem o combate a leishmaniose.

 

PORTAL BIOQMED. Sabemos que o senhor tem uma forte veia política dentro da universidade. O que o senhor pensa da atual gestão da universidade em relação à questão da democratização do ensino e do incentivo à excelência através de mecanismos meritocráticos? Como o senhor vê o financiamento de pesquisa científica que acontece hoje no Brasil e no estado do Rio de Janeiro?

PROFESSOR JOSÉ ROBERTO: A atual administração central da UFRJ encontrou uma Universidade sem recursos e cheia de dívidas. Vem tentando apesar de toda a dificuldade fazer com que a Universidade não pare. Essa restrição orçamentária que assola a Universidade pública, e as atividades científicas no Rio de Janeiro e no Brasil é resultado da crise econômica que está em curso no Brasil e que é conseqüência da crise do capital internacional.

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Recomendamos fortemente a leitura do artigo “Modulation of Na+/K+ ATPase Activity by Hydrogen Peroxide Generated through Heme in L. amazonensis.” no site do periódico através do endereço eletrônico: http://journals.plos.org/plosone/article?id=10.1371/journal.pone.0129604

Formato para citação:
* Rocco-Machado N, Cosentino-Gomes D, Meyer-Fernandes JR. Modulation of Na+/K+ ATPase Activity by Hydrogen Peroxide Generated through Heme in L. amazonensis. PLoS One. 2015 Jun 12;10(6):e0129604. doi: 10.1371/journal.pone.0129604.

Por Larissa Haerolde e Francisco Prosdocimi para o portal BIOQMED.