Publicado em 06/06/2016

Efeitos antitrombóticos da botrojaracina, uma molécula extraída do veneno da jararaca

A literatura tem demonstrado, em diversas situações patológicas, a incidência de eventos que envolvem o aumento de moléculas conhecidas como protrombóticos como uma condição adicional de diversas patogêneses que promovem a formação da trombose.

A trombose é causada pela ativação indevida e descontrolada do sistema hemostático e pode acontecer em doenças cardiovasculares, umas das principais causas de mortes mundialmente, onde ocorre uma alteração do fluxo e aumento da coagulação sanguínea nos vasos, resultando numa trombose arterial ou venosa. Esse problema também pode estar presente em doenças como câncer, em infecções e frequentemente após cirurgias ortopédicas e oncológicas, em que há também alta ocorrência do trombo.

Publicado no periódico Toxicon em 11 de Maio de 2016, o artigo ''Exploiting the antitrombotic effect of the (pro)thrombin inhibitor bothrojaracin'', reuniu um grupo de alunos e pesquisadores sob a liderança da Professora e Diretora do IBqM Dra. Russolina Zingali e teve como objetivo avaliar o efeito da molécula botrojaracina, cuja atividade interfere no sistema hemostático, comportando-se como um importante e eficiente inibidor da protrombina (um precursor da trombina, cuja atividade é fundamental para a cascata de coagulação).

Para isso, os pesquisadores utilizaram modelos experimentais em ratos e observaram os efeitos in vivo da molécula.

Atividades anticoagulantes: interação com  protrombina e trombina

O veneno de serpentes tem sido descrito como uma excelente fonte de moléculas capazes de modular o sistema hemostático. A botrojaracina, uma lectina do tipo C encontrada no veneno da serpente Bothrops jararaca, foi caracterizada como um importante anticoagulante. O que acontece é que essa molécula é capaz de  reconhecer o exosítio I da trombina (um fator da coagulação, responsável por atuar sobre o fibrogênio convertendo ele em fibrina para a formação do coágulo) promovendo assim a inibição da coagulação do fibrinogênio e da agregação plaquetária.

Além disso, a molécula também é capaz de interagir com a protrombina plasmática de ratos, uma interação mediada pela alta afinidade ao proexosítio I da protrombina, formando um complexo estável e inibindo a ativação do zimogênio no sítio de formação do trombo.  A formação desse complexo resulta na redução da formação da trombina por ativadores exógenos ou fisiológicos.

Apesar das altas concentrações requeridas de botrojaracina para a ação antitrombótica, o efeito do complexo botrojaracina-protombina foi de longa duração, permanecendo estável mesmo depois de 24 horas após a aplicação da dose intravenosa.

Dados do estudo demonstraram que a botrojaracina consegue inibir a trombose in vivo, além de promover um moderado aumento na perda de sangue em comparação a heparina, bem como a diminuição da formação de trombina em razão do complexo botrojaracina-protombina.

Com mecanismos e propriedades de ações anticoagulantes, podemos inferir que a botrojaracina pode ser um promissor protótipo a ser direcionado nos estudos de desenvolvimento das drogas capazes de interagir com a protrombina, visto que atualmente drogas como heparina e warfarina (utilizadas na prevenção e tratamento de trombose), apresentam várias desvantangens, como riscos de complicações hemorrágicas, administração subcutânea e controle frequente da coagulação.toxicon

Convidamos a Profa. Russolina Zingali para responder duas questões sobre seu trabalho:

PORTAL BIOQMED. A estrutura, os mecanismos e vias que a botrojaracina está envolvida atuando já são bem conhecidas? Em serpentes, quais os efeitos da atuação dessa proteína durante o processo de envenenamento?

PROFESSORA RUSSOLINA ZINGALI. Sim, desvendamos por várias técnicas o seu mecanismo de ação, mas ainda não temos os dados estruturais do complexo botrojaracina-trombina ou botrojaracina-protrombina. A groso modo: se por um lado ela se liga forte e especificamente à trombina, por outro, a botrojaracina também é capaz de se ligar ao seu precursor  a protrombina, inibindo a formação da própria trombina. Portanto, esta molécula induz  uma diminuição substantiva na quantidade de trombina formada e esta, por sua vez, é imediatamente inibida pela própria botrojaracina. Voltando a questão, esta é uma pergunta recorrente, embora seja tentador pensar no papel da botrojaracina durante o envenenamento, não é fácil responder essa pergunta.

Certamente a botrojaracina não tem atividade tóxica, já injetamos quantidades altas em animais sem provocar a morte dos mesmos ou qualquer efeito nitidamente tóxico. Para responder essa pergunta precisamos inicialmente entender a composição do veneno. Em outro trabalho de nosso grupo, publicado recentemente no Journal of Proteomics, descrevemos a composição deste veneno com detalhes, por técnicas proteômicas e transcriptômicas. Usando estas técnicas é possível mostrar que o grupo da família das Lectinas tipo C compõe entre 10 e 15% do veneno e destas menos de 1% são efetivamente de botrojaracina. A maior parte da atividade tóxica do veneno de B. jararaca se concentra não em uma, mas em várias moléculas, principalmente proteases e fosfolipases.

Eu sempre brinco que o principal mecanismo tóxico do veneno de jararaca é provocar uma poli-esculhambose geral... por quê? O veneno é muito diverso, tem mais de 100 componentes pertencentes a cerca de 12 famílias de proteínas. Separados, na maioria das vezes, esses componentes não são muito tóxicos, mas matam quando estão juntos. O que isto significa? De um modo geral os venenos de animais peçonhentos são formados a partir de um arcabouço conservado de estruturas proteicas, relativas aos seus genes ancestrais, por exemplo, as lectinas do tipo C, fosfolipases do tipo A2, serinoproteases, etc. Mas com a duplicação desses genes e mutações sucessivas foram surgindo moléculas que têm o mesmo arcabouço estrutural, porém,  com atividades biológicas completamente diferentes.

Vou continuar no exemplo da botrojaracina, o veneno de jararaca possui pelo menos outras quatro lectinas tipo C purificadas. Uma se liga (i) ao Fator X da coagulação, a IX/X "Binding Protein" (IX/XBP), outra se liga (ii) a um fator plasmático chamado de von Willebrand, a botrocetina, enquanto a terceira (iii) se liga a um receptor das plaquetas, a glicoproteina IX , GPIX BP e, a última, (iv) que se liga a galactose. Cada uma dessas moléculas adquiriu ao longo da evolução uma atividade biológica bem diferente da original. Assim, o veneno de jararaca possui muitas moléculas com várias atividades biológicas que no conjunto perturbam a homeostasia dos vários sistemas fisiológicos, como o sistema hemostático, o sistema renina-angiotensina, o sistema complemento entre outros além de atuar nas células endoteliais e musculares, etc. (Nem todos os venenos atuam desta forma: o de cascavel, por exemplo, tem neurotoxinas que bloqueiam a junção neuromuscular levando a uma paralisia respiratória).

Por isso, no caso do veneno de jararaca, fica muito difícil estudar o papel da botrojaracina no envenamento. Eu acredito que ela não tem relevância nesse contexto, mas sim no contexto do conhecimento do seu mecanismo de ação e no seu possível uso como modelo para um medicamento. No entanto, esta pergunta ainda continua aberta.

PORTAL BIOQMED.  A botrojaracina tem sido um dos seus alvos de estudos há alguns anos. Quais as vantagens farmacológicas que essa molécula exibe em relação as outras moléculas que já são atualmente utilizadas para a prevenção de trombose?

PROFESSORA RUSSOLINA ZINGALI. Excelente pergunta, mas a resposta é longa, tentarei simplificar. Antes é importante ressaltar que a trombose não é uma única doença e vão haver diferentes tratamentos e prevenções dependendo do local onde o trombo for formado e das características celulares e moleculares destes, mas não vou entrar aqui nesta questão do tipo de trombo.

As drogas anticoagulantes de primeira geração mais usadas são a warfarina e a heparina. A gama de drogas mais modernas cresce a cada dia e envolvem vários mecanismos de ação.

Do ponto de vista da prevenção da trombose, um dos pontos mais importantes dessas drogas é que, ao tentar evitar um trombo, você pode levar a uma hemorragia. O sistema hemostático tem um balanço muito delicado e, dependendo de como você mexe nele, você pode passar da trombose para hemorragia muito rapidamente. Então o que você deseja num antitrombótico ideal para prevenção? (i) que evite a formação dos trombos "ruins", mas que uma certa quantidade de trombos "bons" continuem a ser formados; (ii) que ele não provoque hemorragia; (iii) geralmente o ideal é que seja uma droga que possa ser digerida oralmente, e; (iv) que tenha um efeito prolongado para que haja mais adesão ao tratamento. Os itens (i) e (ii) são quase impossíveis de serem conseguidos, pois sempre que você mexe num lado da balança você vai alterar o outro. Como fazer então? Nesses casos o que é importante é a janela terapêutica, ou seja, é importante que a dose que previne o trombo seja muito menor do que a dose que provoca a hemorragia.

A warfarina é uma droga de administração oral de efeito prolongado (mas demora para iniciar seus efeitos que dependem da síntese dos fatores de coagulação), porém com janela terapêutica muito pequena, por isso, os pacientes devem ser acompanhados o tempo todo durante o uso do medicamento.

A heparina é injetável e tem um efeito muito curto, embora já existam derivados da heparina mais vantajosos (porém com custos altos). Também com uma janela terapêutica pequena.

Em relação a estes medicamentos e outros modernos, mostramos que, na dose terapêutica, a botrojaracina não provoca hemorragia. Outro aspecto interessante é o fato de que a botrojaracina já encontra seu alvo mesmo antes do processo hemostático ser ativado, assim, a protrombina já carrega o seu inibidor e o efeito, por isso, é bastante prolongado. Ainda temos que estudar porquê o clearence da protrombina não aumenta quando está ligada à botrojaracina. Porém, nós sabemos que a botrojaracina ainda não pode ser usada como droga por que: (i) ainda não produzimos a molécula recombinante e a purificação da molécula é trabalhosa e resultaria num processo muito caro e (ii) por ser uma proteína relativamente grande (27 kDa), ela provoca a produção de anticorpos, o que dificulta o seu uso prolongado. Assim, prosseguimos para detalhar seu mecanismo de ação para que possamos, através do conhecimento de sua estrutura e, especialmente dos complexos, sabermos como precisamente ela liga a protrombina e trombina para que possamos propor moléculas com mecanismo de ação semelhante.

PortalLina

Recomendamos fortemente a leitura do artigo ''Exploiting the antitrombotic effect of the (pro)thrombin inhibitor bothrojaracin'' no site do periódico através do endereço eletrônico: http://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0041010116301362

Formato para citação: Assafim M, Frattani FS, Ferreira MS, Silva DM, Monteiro RQ, Zingali RB. Exploiting the antithrombotic effect of the (pro)thrombin inhibitor bothrojaracin. Toxicon. 2016 May 11;119:46-51. doi: 10.1016/j.toxicon.2016.05.007. [Epub ahead of print] PubMed PMID: 27179421.
Por Larissa Haerolde e Francisco Prosdocimi para o portal BIOQMED.