Publicado em 04/09/2015

Uma hipótese para unificar aspectos físicos e químicos do desenovelamento de proteínas

Não é todo dia que o IBqM tem um trabalho científico tão denso — e elaborado por apenas dois autores (!) — publicado em uma das mais prestigiosas revistas científicas em nível internacional. Porém, no dia 6 de abril de 2015, o Prof. Jérson Lima Silva e o pós-doutorando Guilherme A. P. Oliveira conseguiram essa façanha em um artigo de 10 páginas e 8 figuras! O artigo intitulado "A hypothesis to reconcile the physical and chemical unfolding of proteins" foi publicado no periódico norte-americano PNAS, cujo fator de impacto é de 9,6.

Neste artigo, os autores tentam aplicar duas técnicas diferentes para modificar as estruturas das proteínas de forma a tentar entender como estruturas mal enoveladas dessas moléculas podem ser responsáveis por doenças como o câncer e o mal de Alzheimer. Usando tecnologias de ressonância magnética, nossos cientistas puderam verificar as mais sutis diferenças conformacionais nas proteínas quando submetidas a estresses físicos (pressão) e químicos (alta concentração de uréia). A compreensão de como as estruturas das proteínas são modificadas por esses estresses pode permitir uma melhor compreensão da etiologia de doenças neurodegenerativas e câncer. O pós-doutorando Guilherme Oliveira aceitou gentilmente ser entrevistado para este portal e nos contou detalhes sobre a importância de suas descobertas.

jerson

 

PORTAL BIOQMED. Bom dia, Guilherme. O portal BIOQMED parabeniza os senhores pela publicação! Sabemos que a doença de Parkinson e Alzheimer são causados por grandes agregados proteicos gerados pelo enovelamento incorreto de proteínas. Neste trabalho recém-publicado vocês testam diferentes formas de causar problemas no enovelamento protéico usando fatores químicos e físicos. Qual a importância dos mecanismos de desenovelamento para o desenvolvimento de doenças humanas como o câncer?

GAPO. Compreender os mecanismos relacionados ao processo de desenovelamento protéico podem nos fornecer pistas que podem levara até mesmo para a cura dessas doenças. Por exemplo, para uma proteína alcançar sua estrutura funcional, seus resíduos de aminoácidos precisam experimentar diversos contatos entre si que, muitas vezes, podem gerar intermediários parcialmente desenovelados e não funcionais. Essas estruturas intermediárias da via de desenovelamento ou enovelamento podem deslocar o equilíbrio para a formação de mais estruturas não funcionais, gerando com isso a produção de agregados protéicos relacionados com as doenças descritas. Na verdade, é como se esses intermediários funcionassem como ponto inicial para a geração de agregados protéicos. Se conseguirmos compreender melhor esse ponto inicial em diferentes vias de agregação, podemos futuramente buscar estratégias para impedir que ele ocorra. Como em qualquer situação de nosso cotidiano, se quisermos propor uma solução, primeiro temos que saber com o que estamos lidando!

PORTAL BIOQMED. Você quer dizer que, para que o desenovelamento de proteínas ocorra, as proteínas devem passar por estágios consecutivos à medida que vão perdendo sua forma nativa? Me parece que vocês querem gerar um modelo genérico para compreender as etapas sucessivas que vão ocorrendo à medida em que uma proteína perde sua conformação ativa. Como vocês estudam esse modelo de desenovelamento?

GAPO. Novamente acho interessante fazer uma analogia com nosso cotidiano: se quisermos obter uma informação profunda sobre um determinado sistema, precisamos perturbar esse sistema. Ou seja, se diversos indivíduos estão andando por uma rua em sua direção ou em direção oposta e você está na dúvida sobre a direção correta a seguir, terá que perturbar alguns indivíduos até obter sua informação. No mundo das proteínas, isso ocorre de maneira semelhante: para obtermos informações sobre o caminho que uma cadeia polipeptídica segue durante seu percurso de desenovelamento ou enovelamento, temos que perturbá-las de diferentes formas. As ferramentas mais comuns que utilizamos para extrair essas informações de proteínas são as perturbações químicas com a utilização de agentes como ureia e guanidina e por perturbações físicas como a variação de temperatura e pressão. Em nosso trabalho, utilizamos a ureia e a pressão para entender o percurso que as proteínas adotam durante o processo de desenovelamento e, pelo que nossos resultados sugerem, conseguimos observar diferentes percursos, dependendo do tipo de perturbação que aplicamos.

PORTAL BIOQMED. E como um processo químico tal como a adição de ureia pode levar à modificação de uma estrutura protéica causando a perda da função original ?

GAPO. Bem, existem duas hipóteses controversas na literatura atual sobre o efeito da ureia em proteínas. A primeira é a hipótese de interação direta da ureia com a proteína; e a segunda refere-se a hipótese indireta, onde a ureia desloca moléculas de água próximas à proteína ao invés de interagir diretamente com ela. Em ambas as hipóteses, o resultado final é o mesmo: a proteína sofre o processo de desenovelamento. Nossos resultados fornecem fortes indícios de que a hipótese predominante para o desenovelamento mediado por ureia é a direta, onde a ureia interage com a cadeia polipeptídica e leva a formação de um estado intermediário mais sensível a pulsos de pressão com o arcabouço tridimensional ainda montado. Essas características observadas para esse intermediário dão a ele o nome, do inglês, "dry molten globule state".

PORTAL BIOQMED. E qual seria a relevância dos mecanismos físicos de desenovelamento para modificar a estrutura 3D nativa da proteína?

GAPO. O efeito da pressão em proteínas é mais brando que o efeito da ureia e comumente afeta a estrutura protéica através de um processo reversível. Diferentemente do que ocorre na presença do agente químico, a pressão afeta de forma mais heterogênea a estrutura proteica, sendo seu efeito mais pronunciado em regiões onde existem cavidades na superfície ou cavidades internas geradas por defeitos do enovelamento proteico. Em todo caso, a pressão parece dar origem a intermediários distintos aos formados na presença de ureia.

PORTAL BIOQMED. No seu trabalho, os senhores estudam o desenovelamento de uma proteína chamada MpNep2. Como o estudo do desenovelamento de uma proteína específica como MpNep2 pode nos ajudar a compreender fatores mais genéricos sobre o desenovelamento de quaisquer proteínas, como a p53 ou a beta-amilóide?

GAPO. Definitivamente essa é uma ótima pergunta. No mundo da experimentação científica, buscamos sempre extrapolar alguns mecanismos a partir de observações específicas. Características observadas em determinados modelos são utilizados como alicerces para, a partir da formulação de hipóteses, podermos propor uma teoria mais abrangente. Entretanto, para que isso ocorra, é necessário muito esforço em experimentação científica e a confirmação da hipótese em outros modelos biológicos. Nossa hipótese de desenovelamento proteico alcança, até o momento, um grupo pequeno de proteínas. Entretanto temos como objetivo imediato expandi-la para outras proteínas como, por exemplo, para a p53. Definitivamente, se houver a confirmação de nossa hipótese em intermediários proteicos de outros modelos como a proteína p53 e outras proteínas relacionadas a patologias humanas, teremos uma quebra de paradigmas na literatura recente e uma nova visão para a intervenção terapêutica nessas doenças.

GuilhermeJerson

Créditos da Ilustração: Verônica Tascheri;
Design Gráfico: Francisco Prosdócimi

Recomendamos fortemente a leitura do artigo “A hypothesis to reconcile the physical and chemical unfolding of proteins” no site do periódico através do endereço eletrônico: http://www.pnas.org/content/112/21/E2775.long

Formato para citação:
* de Oliveira GA, Silva JL. A hypothesis to reconcile the physical and chemical unfolding of proteins. Proc Natl Acad Sci U S A. 2015 May 26;112(21):E2775-84. doi: 10.1073/pnas.1500352112. Epub 2015 May 11. PubMed PMID: 25964355; PubMed
Central PMCID: PMC4450381.

Por Francisco Prosdocimi para o portal BIOQMED.