Publicado em 22/02/2015

Os genomas das aves: entrevista com o Prof. Francisco Prosdocimi

O IBqM ficou orgulhoso ao anunciar, no último mês de Dezembro (2014) que um grupo de pesquisas do Instituto participou de uma publicação na mais prestigiosa revista de ciência norte-americana, a Science Magazine.

O trabalho publicado foi capa da revista na semana e descrevia, pela primeira vez, os genomas completos de 48 aves. Antes deste trabalho estima-se que haviam menos do que 10 aves totalmente sequenciadas.

ScienceCover_AvianGenomics

A capa da revista Science de 12/12/2014 apresentou
os resultados do consórcio internacional avian-phylogenomics,
que um dos grupos de pesquisa do IBqM faz parte.

 

O trabalho publicado tem sido considerado seminal na área da filogenômica e da genômica comparativa. Nunca antes um trabalho havia analisado tantos genomas completos de uma só vez.

Em uma entrevista realizada conosco, o prof Francisco Prosdócimi, um dos cerca de 100 autores da publicação e líder do Laboratório de Genômica, Bioinformática e Biodiversidade do IBqM, ressaltou a importância do trabalho, refletiu sobre a importância das ciências genômicas na biologia contemporânea e esclareceu a participação brasileira com relação ao consórcio internacional.

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BIOQMED: Professor Francisco, qual a relevância de se estudar genomas de aves e qual a importância deste trabalho que o senhor participou?

PROF. FRANCISCO PROSDÓCIMI: Os genomas dos organismos encerram dois tipos de informações básicas: (i) as informações genéticas e evolutivas, que fazem com que os pais se pareçam com os filhos e que as espécies evoluam e (ii) um catálogo metabólico que contém o código informacional para fazer proteínas e outras moléculas celulares.

Normalmente, os genomas animais são considerados importantes por que nos fornecem informações básicas que podem nos auxiliar a entender como outras formas de metabolismo funcionam. Em nosso laboratório trabalhamos, por exemplo, com genomas parciais de beija-flores. Esse trabalho é feito em cooperação com o Museu Nacional da UFRJ e também com pesquisadores norte-americanos. Os beija-flores são pássaros incríveis, que alcançam o limiar animal com relação ao ritmo metabólico. Seus corações podem chegar a bater até 80 vezes por segundo e eles precisam se alimentar o dia inteiro, beijando centenas de flores para que consigam manter seu metabolismo ativo. À noite, muitas vezes entram em um estado chamado de torpor, quando seu batimento cardíaco passa, aproximadamente, a 30 batimentos por minuto. É claro que há grandes diferenças entre as espécies. A questão é que estudando os beija-flores podemos vir a entender melhor alguns aspectos do metabolismo energético dos organismos vivos em geral e também do ser humano.

Por outro lado, os estudos do genoma propriamente dito não fornecem nenhuma resposta muito sofisticada sobre a biologia do organismo. Os estudos de genoma são muitas vezes comparados com estudos de anatomia e os genoma são referidos muitas vezes como a "anatomia molecular" de uma espécie. Eles precisam estar associados com outros estudos para entendermos efetivamente aspectos mais fisiológicos sobre o funcionamento celular.

É preciso lembrar que quem ama e se maravilha em estudar os animais, são os biólogos. E os biólogos, como eu, são apaixonados tanto pelos bichos, plantas e microorganimos, como pela forma segundo a qual eles evoluem e como funcionam bioquimicamente, do lado de dentro das células. O "livro sagrado" dos biólogos poderia ser considerado "A origem das espécies", lançado em 1859 pelo britânico Charles Robert Darwin. À época de Darwin, os biólogos mediam as características anatômicas dos animais, como os tamanhos das asas e dos torsos dos pássaros, e faziam comparações entre elas para tentarem entender a evolução das espécies. Hoje em dia, nós sequenciamos seus genomas para tentarmos elucidar essas questões. Os genomas são conjuntos riquíssimos de informação evolutiva e são estudados para compreendermos melhor como as espécies evoluíram, neste caso, as espécies e os grandes grupos de aves foram o foco de nosso estudo.

BIOQMED: E o que é a filogenômica?

FRANCISCO: Pois bem, a filogenômica é uma das novas ciências ômicas que surgiram há quase 10 anos com a finalidade de aplicar as tecnologias de alta performance nos estudos em biologia. A filogenômica é filha da filogenética e a filogenética quer contar a história evolutiva de genes e, principalmente, das espécies naturais.

No tempo de Darwin, como já comentado, os evolucionistas mediam e comparavam características anatômicas de organismos. Desde que surgiram as técnicas de sequenciamento do DNA, nos fins da década de 70, os evolucionistas passaram a comparar o DNA das espécies para estudos taxonômicos. No início houve uma briga e um grande alvoroço entre os evolucionistas "clássicos", que mediam características físicas em animais, e os "modernos", que agora queriam inferir a evolução pela comparação de dados de sequenciamento de DNA. Logo se compreendeu que ambas as abordagens eram importantes e o estudo da filogenética tomou ainda mais força, sendo que muitos dos antigos anatomistas agora passavam a sequenciar também o DNA.

Mas uma crítica que a filogenética jamais conseguiu se safar foi a de que eram usados poucos genes para inferir a evolução de uma espécie inteira e já era bem sabido que os genes evoluem a taxas distintas; um reflexo molecular do chamado "equilíbrio pontuado" de SJ Gould. Por isso, a filogenômica melhora, atualiza e expande o estudo filogenética. Na filogenômica, os genes são analisados às dezenas, centenas ou milhares. Neste estudo que publicamos na Science, por exemplo, foi gerado um grupo de genes contendo mais de 8295 genes que foram analisados em conjunto para todas as espécies. Ou seja, são pelo menos 48 * 8295 genes analisados que totalizam quase 400.000 genes analisados ao mesmo tempo! São grupos de ortólogos representando os genes do metabolismo basal e contendo a versão de cada gene para cada uma das aves estudadas. Esse dataset ajudou muito na reclassificação de alguns grandes grupos de aves. E isso também aponta para a necessidade da análise computacional para compreendermos a evolução dos genomas e seus aspectos metabólicos. Em nosso laboratório temos um super-computador que já não está mais aguentando o trabalho exaustivo com os dados genômicos. A cada dia que passa, esse tipo de estudo exige a utilização de computadores cada vez mais sofisticados. Jamais uma pessoa seria capaz de analisar centenas de milhares de genes ao mesmo tempo, isso seria impossível! Daí a importância da bioinformática, área do meu doutorado, para a ciência contemporânea.

 

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O grupo de pesquisa avian-phylogenetics se reuniu no Brasil (LNCC, Petrópolis) em Maio de 2014 para discutir os avanços na pesquisa dos genomas de aves. Na foto aparecem alguns dos autores do trabalho publicado na Science: Erich Jarvis, Claudio Mello, David Burt, Maria Paula Schneider e Francisco Prosdocimi. A coordenadora do LNCC, Ana Tereza Vasconcelos e o doutorando do IBqM Nicholas Barroso Lima também fazem parte da equipe.

 

BIOQMED: Como seu deu a contribuição brasileira no trabalho e, em especial, a sua participação?

FRANCISCO: A contribuição brasileira se deu através de nossa participação no consórcio chamado avian-phylogenomics e liderado pelo pesquisador norte-americano Erich Jarvis (Duke University). Erich foi colega de doutorado do pesquisador brasileiro Claudio Mello (Oregon University), que viu o enorme interesse em se trabalhar com os genomas de aves e organizou um grupo de pesquisa no CNPq para que pudéssemos sequenciar alguns pássaros emblemáticos da fauna brasileira. Dentre esses pássaros estava o papagaio, que tanto Claudio quanto Erich, originalmente estudiosos em neurociências, estavam extremamente interessados pelo fato de ser um pássaro que apresenta excelência em uma característica não tão comum nas aves e que exige plasticidade neuronal: o aprendizado vocal. Ambos trabalham com aspectos neurológicos do desenvolvimento e o genoma do papagaio poderia contribuir com alguma resposta que explicasse a plasticidade neurológica relativa ao aprendizado. Estamos ainda trabalhando nesse genoma. O grupo brasileiro foi financiado pelo CNPq e foi chamado de "SISBIOAVES". A coordenação ficou com a pesquisadora parense Maria Paula Schneider e a parte de bioinformática ficou a cargo do LNCC, através da pesquisadora Ana Tereza Vasconcelos. Foi ela quem me convidou para entrar no projeto logo que me mudei para o Rio de Janeiro. Eu trabalhava no LNCC duas vezes por semana à época e Ana achou que eu seria a pessoa ideal para ir aos Estados Unidos trabalhar com o grupo do Erich nos passos iniciais do projeto do papagaio e dos genomas das aves.

Foi assim que eu visitei o grupo de Jarvis, na Duke University, se não me engano no mês de Janeiro de 2012, quando começamos a estabelecer nossa colaboração. Erich tinha acabado de sequenciar o genoma do periquito e estava bastante eufórico com os resultados obtidos. Ele tinha conseguido uma verba modesta para fazer o trabalho mas havia conseguido uma colaboração com o pessoal do BGI (Beijing Genome Institute), na China, para realizarem o sequenciamento das outras dezenas de aves. Os chineses tinham acabado de abrir seu instituto e eu tinha a impressão de que eles precisavam de projetos grandes e sólidos para justificar o investimento.

Nosso grupo brasileiro participou de um único trabalho, porém o consórcio publicou mais de 20 artigos, não só na Science como também em outras revistas, como a Genome Biology e Genome Research. O Museu Emilio Goeldi forneceu algumas amostras para o sequenciamento e nós trabalhamos nos genomas de duas espécies de caprimulgiformes que foram importantes para o fechamento do estudo. Sugerimos formas de limpeza de sequencias e realizamos montagem e anotação de pelo menos dois dos genomas que fazem parte da publicação.
BIOQMED: O senhor poderia nos relatar os pontos fortes da publicação?

FRANCISCO: Este trabalho tem dois tipos de inovação: a primeira é de caráter metodológico. Os conjuntos de dados genômicos foram separados perfeitamente para permitir uma compreensão de quais respostas eram dadas por cada tipo de dado. A árvore principal que construímos foi chamada de TENT que significa "Árvore de nucleotídeos contendo evidência total" (Total Evidence Nucleotidic Tree). Nessa árvore juntamos diferentes tipos de moléculas de DNA, como genes, íntrons, regiões não-gênicas, elementos ultra-conservados (UCE) e etc. Porém analisamos também essas outras características em separado, pois se antes os pesquisadores se digladiavam para definir qual seria a melhor metodologia a ser usada, hoje nós fazemos TODAS as análises possíveis e apresentamos os resultados, discutindo suas divergências. Não é o caso de fazer um embate de metodologia e sim de usar todas as disponíveis para entendermos como evoluiu o grupo das aves. Assim, temos grupos de aves que são suportados na análise evolutiva quando usamos as regiões não-gênicas (que é a maior parte do DNA) e refutados quando usamos só os genes. Ao invés de usarmos uma metodologia e chegarmos a uma conclusão direta, mostramos os resultados e descrevemos o que eles nos dizem. Não há apenas uma resposta certa. Os dados são muito complexos e exige uma análise sofisticada para evitar misturar dados com o ruído dos erros que inevitavelmente acontecem nos sequenciamentos de genomas.

Além disso, todo trabalho de genômica apresenta um resultado parcial. Os genomas precisam ser refeitos e retrabalhados a todo o tempo para ficarem realmente bons. O genoma humano está hoje na versão 38 e ainda apresenta erros e inconsistências aqui e ali. O genoma humano foi originalmente publicado em 2001 por dois consórcios e até hoje há controvérsias sobre várias questões do nosso genoma. Esse trabalho que publicamos apresenta a versão 1.0 dos genomas de todas essas aves e muitos dados podem ainda apresentar problemas. Mesmo assim, este é o estado da arte em trabalhos de filogenômica e é um grande avanço poder entender e trabalhar com esses dados, mesmo sendo preliminares e contendo um grau de ruído ainda difícil de ser mensurado.

BIOQMED: E qual o segundo tipo de inovação que o trabalho propõe?

FRANCISCO: O segundo tipo consiste nas relações evolutivas entre os mais diversos grupos de aves entre si. A verdade é que nem mesmo os ornitologistas estavam de acordo entre as relações filogenéticas entre os grandes grupos de aves. Nesse trabalho, por exemplo, propomos a separação entre os clados Passarea e Columbea, ou seja, os pássaros separados dos pombos e dos flamingos; com as galinhas e os patos como grupo externo e os avestruzes na base -- para falar de forma mais geral. Além disso, separamos também os pássaros que vivem na terra (landbirds, Telluraves) de um grupo maior de pássaros que vivem na água (waterbirds, Aequornitia). Dentre os pássaros da terra, separamos também os que provavelmente surgiram na Australia (Australaves) daqueles oriundos do continente Africano (Afroaves). Segundo nossos dados, os falcões (Falconiformes) são grupo-irmão dos passeriformes e dos psicitaciformes mas não incluem nem as águias e nem os urubus no mesmo grupo, como pensado anteriormente.

Diversas outras relações entre grupos de aves foram descritas nesse trabalho do qual participamos e ele agora define as mais prováveis relações entre os grandes grupos de aves. Essa classificação será aos poucos verificada pelos ornitólogos que tentarão validá-la ou refutá-la. O trabalho portanto inaugura uma nova fase de controvérsias sobre as relações entre os grandes grupos de aves. E considerando que usamos o maior conjunto de dados disponível até hoje, será difícil para algum grupo refutar essas relações antes que façam muito trabalho. Mas eventualmente algumas relações serão disputadas com razão, e assim teremos que elaborar uma nova versão desses genomas e buscar evidências que expliquem possíveis erros nesta análise ou que confirmem o suporte molecular a determinadas relações entre os grupos.

BIOQMED: Obrigado pela entrevista, professor.

FRANCISCO: Eu é que devo agradecer, foi um prazer colaborar! Espero que nosso instituto possa também publicar cada vez mais entrevistas com professores e alunos explicando os pontos fortes e as principais implicações de seus trabalhos!

Enfim, acho que o Brasil precisa aproveitar essa enorme biodiversidade que tem para estudá-la a fundo, principalmente do ponto de vista genômico. Não só os genomas de aves precisam ser estudados, mas também os genomas de plantas e genomas de seres humanos com alguma doença genética em particular. Temos hoje, pela primeira vez na história da humanidade, essa incrível capacidade de estudar e conhecer detalhes do metabolismo e do comportamento molecular de células. Esse conhecimento tem sido usado para melhorar nossas vidas, ajudar a curar enfermidades e para também compreendermos mais sobre a vida e sobre o metabolismo animal, vegetal e microbiano. Cada vez mais esse tipo de conhecimento nos trará conhecimento útil. Nos países com tecnologia mais avançada, até mesmo a genômica individual já é realidade hoje. Os governantes brasileiros precisam pensar um passo à frente e investirem mais na ciência e em sua relação direta com a educação e a tecnologia para a análise biomédica, ou então continuaremos a ser colonizados intelectualmente pelos países de primeiro mundo. Um abraço a todos!

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Para mais informações, acesse diretamente o trabalho publicado no sítio da revista Science:

* Whole-genome analyses resolve early branches in the tree of life of modern birds
http://www.sciencemag.org/content/346/6215/1320.full