Publicado em 06/07/2016

O médico, o monstro e as proteínas priônicas

O enovelamento de proteínas é um processo químico e físico de importância fundamental para diversos processos celulares do organismo, já que proteínas corretamente enoveladas são funcionais. O mau enovelamento proteico é uma desordem que pode conduzir a vários tipos de doenças degenerativas. Os príons, partículas proteicas comumente observadas na superfície de diversos tipos celulares (e principalmente expressos em neurônios) são agentes infecciosos que contribuem como grandes causadores do surgimento desses tipos de doenças.

A modificação estrutural da proteína príon celular (PrP) está intrinsecamente ligada a encefalopatia espongiforme transmissível, uma doença caracterizada pelo acúmulo difuso de PrP na forma scrapie, resultando na degeneração do sistema neurológico. Essas partículas proteicas são capazes de induzir a agregação e o enovelamento incorreto de outras proteínas príon de células vizinhas; e podem também ligar a ácidos nucleicos.

É conhecido que doenças neurodegenerativas como a doença de Alzheimer, a Esclerose Lateral Amiotrófica e a doença de Parkinson possuem, em sua origem, mecanismos moleculares semelhantes relacionados ao enovelamento incorreto das proteínas. Além disso, proteínas relacionadas a algumas dessas doenças apresentam propriedades tipo príon, podendo se propagar de uma célula para outra. Isso acontece quando uma proteína príon patogênica entra em contato com uma proteína príon normal e altera a sua conformação de normal para patogênica - causando danos a outras células e tecidos do organismo.

Em um artigo publicado pelo professor do IBqM Jerson Lima Silva e pela professora Yraima Cordeiro (ex-aluna do IBqM), ambos da UFRJ, os pesquisadores evidenciaram a relação entre o comportamento prionóide e as doenças degenerativas, demonstrando também o envolvimento dos ácidos nucleicos na patogênese destas doenças.

O artigo foi publicado pela revista científica Journal of Biological Chemistry em 10 Junho de 2016, sob o título ''The "Jekyll and Hyde" Actions of Nucleic Acids on the Prion-like Aggregation of Proteins''.

 

Comportamento molecular Jekyll e Hyde

Um amiloide funcional consiste de proteínas que se agregam de forma adequada e são importantes em processos fisiológicos como amadurecimento de neurônios, memória, e modulação no sistema imunológico. Entretanto, há proteínas que formam agregados amiloides não funcionais e estes podem se tornar formas patogênicas que, em níveis elevados nos neurônios, podem provocar encefalopatias. Foi verificado que proteínas envolvidas na Esclerose Lateral Amiotrófica, por ex, interagem funcionalmente com ácidos nucleicos, exercendo suas funções fisiológicas. Já a proteína príon, ao ligar ácidos nucleicos, agrega, podendo causar danos a células e tecidos. Os autores propõem que a interação de proteínas envolvidas em doenças neurodegenerativas com ácidos nucleicos apresenta uma característica tipo Dr. Jekyll e Mr. Hyde, pois a interação pode ser funcional – benigna, ou não funcional, podendo se tornar patogênica.

Os príons são moléculas proteicas e, portanto, não possuem ácidos nucleicos, ou seja, eles atuam como agentes infecciosos capazes de se multiplicarem ao converter outras proteínas de formato benigno para patogênico mesmo na ausência de material genético, atuando de forma diferente de agentes infecciosos como vírus e bactérias. No entanto, já se demonstrou que os ácidos nucleicos podem ser necessários para a formação da proteína príon patogênica, conhecida como PrPSc: a príon anormal, também denominada proteína príon scrapie. Isso quer dizer que eles podem funcionar como catalisadores da conversão da proteína príon não patogênica para sua forma patogênica. Isso foi evidenciado em ensaios in vitro, em que se observou a polimerização e agregação da PrP após sua ligação ao DNA ou a RNA.

A ligação de proteínas aos ácidos nucleicos é uma característica em comum compartilhada entre outras doenças neurodegenerativas. As estruturas de DNA e RNA possuem alta afinidade de ligação a outras proteínas tipo-príon, o que permite a modificação tanto da conformação da proteína em questão quanto do próprio ácido nucleico. No entanto, os ácidos nucleicos, dependendo do contexto celular, podem gerar efeitos inversos sobre a agregação proteica. Por exemplo, ácidos nucleicos modificados podem ser capazes de inibir a conversão de PrP a PrPSc.

Em suma, a proteína príon e outras proteínas de comportamento priônico exercem atividades dependentes do contexto fisiológico e também da interação com ácidos nucleicos, o que pode resultar em uma ação que pode prejudicar o tecido ou pode também ser benéfica.

Convidamos a Profa. Yraima Cordeiro para esclarecer algumas questões sobre essa publicação interessantíssima!

 

PORTAL BIOQMED. A interação entre os príons e os ácidos nucleicos se mostrou ser de alta afinidade. Quais as regiões de ligação entre essas moléculas são conhecidas? Os ácidos nucleicos que catalisam essa conversão estão no núcleo da célula ou no citoplasma?

 

PROFESSORA YRAIMA CORDEIRO. A interação da proteína prion com ácidos nucleicos apresenta afinidade na faixa de nM a microM, dependendo da sequência e forma do ácido nucleico utilizada. Não é sabido ainda a região exata da PrP que liga ácidos nucleicos, mas experimentos do nosso grupo de pesquisa e de outros mostrou que a região N-terminal é importante para a interação com RNA e DNA e que a região C-terminal é importante para a interação com DNA. Em relação ao ácido nucleico, não há sequência definida para a interação, mas é sabido que ácidos nucleicos estruturados interagem preferencialmente com a PrP. Não há experimentos refinados demonstrando a interação da PrP com ácidos nucleicos no ambiente celular, então não temos ainda como definir o local de interação exato. Entretanto, levando em consideração que a PrP celular se encontra na maior parte do tempo ancorada à face externa das membranas celulares, é possível que este ácido nucleico seja uma molécula exógena. Ainda, a PrP já foi encontrada no núcleo e também está presente no citosol, devido a sua ciclagem constante entre a membrana e o interior celular. Ou seja, essas interações poderiam ocorrer em um desses ambientes. Esse ainda é um estudo em aberto que merece atenção cuidadosa da comunidade científica.

 

PORTAL BIOQMED. Já se tem conhecimento de alguma substância com propriedades farmacológicas capazes de bloquear a multiplicação desenfreada dos príons e inibir sua agregação?

 

PROFESSORA YRAIMA CORDEIRO. Há diversas substâncias que tem atividade anti-agregante in vitro, mas nenhuma se mostrou eficaz na clínica.  São doenças de progressão lenta, então, quando os primeiros sintomas clínicos são detectados, muito estrago já foi feito no sistema nervoso central e isto é irreversível. Sendo assim, além de se buscar um tratamento curativo, há que se desenvolver um diagnóstico pré-clínico, que permita iniciar um tratamento imediato e antecipado.

 

 

Recomendamos fortemente a leitura do artigo The "Jekyll and Hyde" Actions of Nucleic Acids on the Prion-like Aggregation of Proteins no site do periódico através do endereço eletrônico: http://www.jbc.org/content/291/30/15482.long

 

Formato para citação: Silva JL, Cordeiro Y. The "Jekyll and Hyde" Actions of Nucleic Acids on the Prion-like Aggregation of Proteins. J Biol Chem. 2016 Jun 10. pii: jbc.R116.733428. [Epub ahead of print] PubMed PMID: 27288413.

 

 

Por Larissa Haerolde e Francisco Prosdocimi para o portal BIOQMED.