Perfil do metabolismo salivar em crianças com doença crônica renal
Atualmente, 10% da população mundial é afetada pela doença crônica renal, sendo que o Brasil é um dos cinco países que possuem mais pacientes em tratamento para essa patologia. Uma das principais formas de tratamento para a doença crônica renal é a hemodiálise, que remove o excesso de fluidos do sangue a fim de auxiliar no funcionamento dos rins. Pacientes submetidos a hemodiálise são acometidos por alguns distúrbios, dos quais podemos citar a significativa redução do fluxo salivar, que pode comprometer a saúde dentária e afetar sua homeostase através da diminuição da proteção contra cárie, indução do aumento do biofilme bacteriano e ocorrências de inflamações na gengiva.
Diante da importância de estudos que abordem os aspectos envolvidos nessa patologia, um trabalho publicado por um grupo de pesquisadores liderados pela Profa. Ana Paula Valente (IBqM) no periódico Metabolomics, em 13 de outubro de 2017, objetivou identificar quais os principais metabólitos constituintes da saliva de crianças e adolescentes, antes e depois da hemodiálise. O estudo, intitulado “Salivary metabolic profile of children and adolescents after hemodialysis", selecionou um grupo de 30 crianças que sofriam de doença crônica renal e um grupo com 40 crianças saudáveis, para coleta de amostras da saliva, comparação e análises das amostras. Para as análises foram empregadas técnicas de espectro de RMN. Os resultados obtidos mostraram que crianças com doença crônica renal apresentam um perfil dentário específico, apresentando variações na expressão dos níveis de moléculas como lactato, ácidos graxos, etanol e ureia. O estudo foi realizado em colaboração com a Odontopediatria da UFRJ.
A Profa. Ana Paula Valente aceitou abordar os resultados obtidos em sua pesquisa em uma entrevista para o nosso Portal.
PORTAL BIOQMED: Bom dia, Profa Ana! Quais as informações mais relevantes sobre os constituintes da saliva de crianças acometidas com a patologia quando comparados com os constituintes da saliva de crianças saudáveis? O que se pode afirmar em relação ao metabolismo desses dois grupos avaliados?
PROFESSORA ANA PAULA: Neste trabalho, utilizamos diferentes estratégias estatísticas para aprimorar o nosso modelo e obtermos resultados confiáveis já que tínhamos um grupo pequeno de pacientes (30-40). Uma das questões que tivemos de lidar para analisar a ureia, por exemplo, foi o intenso sinal da água. Como o sinal da uréia fica próximo ao da água, nós alteramos o pico do RMN da ureia para conseguirmos avaliar, mas assim não conseguimos observá-la com muita precisão. Por isso, analisar a ureia não foi nosso foco. Mas ela também aparece como componente alterado, assim como butirato, creatinina, propionato (de metabolismo bacteriano) e etanol, que não entendemos ainda muito bem por quê, mas que aparece em amostras de saliva. Não sabemos ainda se o etanol está relacionado com metabolismo bacteriano ou aos derivados de produtos dentríficos. No entanto, temos o objetivo de analisar isso mais detalhadamente com experimentos com dentes in vitro, bem como produtos do metabolismo bacteriano. Nós escolhemos 10 pacientes e plotamos a intensidade dos metabólitos antes e depois da hemodiálise para mostrar que existia uma variação entre eles, que não era grande. No caso do acetato, ele é utilizado na hemodiálise como um tampão para a fase aquosa, por isso ele aumenta no sangue. De certa forma, na hemodiálise estamos aumentando os níveis de acetato dessas crianças... então podemos estar criando uma certa síndrome metabólica pelo aumento desses ácidos carboxílicos na circulação. E realmente encontramos alterações na glicólise, gliconeogênese e metabolismo de lipídeos. Então realmente tivemos evidências de que a hemodiálise altera o metabolismo energético desses pacientes.
PORTAL BIOQMED: Em relação às amostras coletadas antes e depois do processo de hemodiálise, seus resultados mostraram, por exemplo, que os níveis de acetato salivar são menores e os de butirato são maiores após o processo. A que se devem essas variações? Quais foram as principais diferenças encontradas antes e depois da hemodiálise?<
PROFESSORA ANA PAULA: O porquê dos baixos níveis de acetato nós não sabemos, mas sabemos que ele é usado como um tampão que causa acidose metabólica nos pacientes. Por estar tirando outros componentes da saliva, como ureia e sais, durante a hemodiálise, ele pode estar drenando também o acetato da saliva. Mas o que foi surpreendente nesse estudo é que não houveram grandes diferenças entre os grupos, mas talvez isso possa ter sido pelo número pequeno de pacientes. Esse trabalho é feito em colaboração com a odontopediatria e a estratégia é coletarmos saliva dos pacientes e em troca eles oferecem o tratamento para essas crianças. Eles têm um programa e acolhem essas crianças em troca da participação nesses estudos.
PORTAL BIOQMED: Por que há uma baixa prevalência de cárie em crianças submetidas a hemodiálise, mas uma maior prevalência de cálculo dental?
PROFESSORA ANA PAULA: Nós fizemos uma pesquisa bibliográfica extensa e não encontramos nada muito exato, mas a ideia é que como existe o aumento de ureia, isso desencadeia uma alteração no pH da saliva e desfavorece essas bactérias da cárie, enquanto favorece a formação de cálculo dental.
PORTAL BIOQMED: Por fim, gostaríamos de saber a sua opinião, como pesquisadora, sobre o uso de animais em estudos científicos em relação aos ensaios in vitro. Atualmente, até que ponto você acredita que as tecnologias podem dispensar a utilização de animais como cobaias em seus experimentos, diante da qualidade e variabilidade dos resultados obtidos em ambas abordagens?
PROFESSORA ANA PAULA: Particularmente eu nunca trabalhei com animais, mas acredito que o uso de modelos animais é essencial para o desenvolvimento científico. Quando converso com meus colegas que trabalham com animais, eles dizem que também estão buscando alternativas para o uso de animais. E essa ideia é muito presente dentro da comunidade científica. Infelizmente ainda precisamos utilizar os animais para alguns testes específicos, mas a priorização de testes in vitro e outras tecnologias é uma diretriz da comunidade científica em geral, não somente no Brasil. Ainda não conseguimos substituir tais modelos mas há uma tendência que isso aconteça, embora ainda não estejamos preparados no momento. Mas alguns experimentos ainda somente são viáveis perante uso de animais, então não tem jeito. Mas a regulamentação e condutas éticas adotadas são muitos importantes, são maneiras que temos a fim de minimizar esse impacto sobre o uso de animais.
Créditos da figura: Larissa Haerolde, Francisco Prosdocimi e Freepik!
Recomendamos fortemente a leitura do artigo “Salivary metabolic profile of children and adolescents after hemodialysis” no site do periódico através do endereço eletrônico: https://link.springer.com/content/pdf/10.1007%2Fs11306-017-1283-y.pdf
Formato para citação:
* Almeida, P.A., Fidalgo, T.K.S., Freitas-Fernandes, L.B. et al. Salivary metabolic profile of children and adolescents after hemodialysis. Metabolomics (2017) 13: 141.
Por Larissa Haerolde e Francisco Prosdocimi para o portal BIOQMED.