Publicado em 06/04/2015

O metabolismo mitocondrial do mosquito: entrevista com o Prof. Marcus Oliveira

Neste mês de março, o grupo do Laboratório de Bioquímica de Resposta ao Estresse (LBRE), liderado pelo Prof. Marcus Oliveira publicou um importante trabalho na conceituada revista científica PLoS ONE.

Em um trabalho extenso realizado por dois pós-doutorares do laboratório e pelo próprio professor, nossos pesquisadores estudaram o metabolismo energético no mosquito Aedes aegypti, principal transmissor da dengue e da febre amarela.

A equipe do portal BioqMed não deixou passar em branco a oportunidade e requisitou uma entrevista com o Prof. Marcus por email. O professor respondeu com gentileza, elegância e inteligência as perguntas diretamente dos Estados Unidos, onde realiza seus estudos sabáticos.

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Acompanhe a seguir nossa entrevista e entenda mais sobre a importância dos trabalhos realizados em nosso Instituto:

PORTAL BIOQMED: Bom dia, professor Marcus. O IBqM gostaria de parabenizá-lo pela publicação de peso no periódico PLoS ONE. Qual a importância de estudarmos a fisiologia mitocondrial de insetos vetores de doenças?

MFO: Eu é que agradeço pelo contato e pelo interesse no trabalho que desenvolvemos no Laboratório de Bioquímica de Resposta ao Estresse (LBRE). O artigo recém publicado na PLoS ONE é o fruto do esforço da Juliana Soares e do Alessandro Gaviraghi, pós-doutores do meu laboratório, que trabalharam muito intensamente nos últimos 3-4 anos para caracterizar funcionalmente as mitocôndrias do músculo de voo do mosquito Aedes aegypti. Ficamos realmente muito felizes com o resultado final pois temos a convicção que demos uma contribuição importante, não somente para o campo da fisiologia mitocondrial, ao revelar detalhes funcionais característicos desta espécie, mas também para a biologia do A. aegypti, a fisiologia dos insetos de uma maneira geral, com potenciais implicações para a dispersão deste vetor. Estou muito orgulhoso deste trabalho que considero um dos mais importantes da minha carreira.

As funções das mitocôndrias em diversos organismos tem sido a cada dia ampliadas, e hoje sabemos que elas não se restringem a apenas "fornecer energia para a célula", mas também participam da produção de radicais livres, dos mecanismos de sinalização e morte celular, do controle da secreção do hormônios, da geração de calor, enfim inúmeras funções celulares. Curiosamente, apesar dos insetos representarem um dos grupos taxonômicos mais abundantes e diversos na natureza, os estudos dedicados a entender o funcionamento da mitocôndria nos insetos são raros na literatura (apenas 1.8% do total de trabalhos publicados sobre mitocôndrias). Sabemos que o controle de doenças como a Dengue se dá essencialmente através do controle das populações do mosquito Aedes aegypti, uma vez que não existem vacinas ou quimioterápicos para o tratamento e prevenção desta doença. Além disso, a disseminação da Dengue na população está intimamente relacionada à capacidade de dispersão do mosquito A. aegypti. O voo permite que os insetos possam se espalhar de maneira muito mais eficiente na natureza, e esta atividade é realizada graças à intensa atividade contrátil dos músculos de voo existentes no tórax de todos os insetos voadores. Para que isto ocorra há a necessidade de uma quantidade colossal de ATP, uma das "moedas energéticas" das células, que é produzido essencialmente nas mitocôndrias. Só para termos uma ideia da imensa capacidade energética dos músculos de voo dos insetos, sabemos que o fluxo energético das abelhas durante o voo contínuo é cerca de 870 vezes maior que o de um maratonista durante a corrida! Assim, estudar a fisiologia mitocondrial nos permite entender como esta organela celular funciona nos insetos vetores, qual a sua importância para a fisiologia e a biologia deste grupo de insetos e quais as consequências da manipulação das suas funções para a dispersão e para a capacidade destes insetos transmitirem doenças.

PORTAL BIOQMED: Há uma diferença na eficiência energética das mitocôndrias de machos e fêmeas do mosquito Aedes aegypti?

MFO: Na verdade a eficiência bioenergética pode ser definida como sendo a capacidade das mitocôndrias sintetizarem uma determinada quantidade de ATP por molécula de nutriente oxidada. Um outro parâmetro importante é a capacidade bioenergética que é definida pela taxa de síntese de ATP nas mitocôndrias por unidade de tempo. De fato, observamos que não há diferença na eficiência bioenergética, seja entre os sexos ou entre os nutrientes. No entanto, há uma clara diferença na capacidade bioenergética entre os sexos e entre os nutrientes, de maneira que as taxas respiratórias das fêmeas são maiores do que as dos machos, sendo que a oxidação de prolina contribui de maneira mais importante para a respiração do que glicerol fosfato ou lipídios. Isto indica que a síntese de ATP no músculo de voo do Aedes é determinada majoritariamente pela capacidade respiratória fornecida na oxidação de diferentes nutrientes e não pela eficiência na transdução da energia das mitocôndrias. Fazendo uma analogia grosseira, considere um imaginário carro flex tri-combustivel (gasolina, etanol e gás natural). Quando abastecido com gasolina o seu rendimento é de 20Km/L e é capaz de atingir a velocidade máxima de 120Km/h. Se o etanol é utilizado como combustível, o rendimento se mantém em 20Km/L, mas a velocidade máxima cai para 80Km/h. No caso do gás natural, o rendimento também se mantém em 20Km/L, mas a velocidade máxima cai para 60Km/h. Assim, a velocidade (capacidade energética) é dependente do tipo de combustível utilizado, mas o rendimento (eficiência energética) é mantido. Guardada as devidas proporções desta analogia, basicamente esta é a mesma relação que nós descobrimos nas mitocôndrias do músculo de voo do mosquito.

PORTAL BIOQMED: Quando vocês dizem que a eficiência mitocondrial do Aedes se deve principalmente a enzimas do complexo I e ao complexo da glicerol fosfato desidrogenase, como isso se relaciona ao metabolismo geral do inseto?

MFO: Todo o estudo foi realizado em um único tecido, o músculo de vôo, que é responsável pela atividade contrátil que permite o voo deste inseto. Optamos por estudar este tecido basicamente pelo fato de ser riquíssimo em mitocôndrias e por nos parecer ambicioso demais para as nossas condições planejar um estudo semelhante em outros tecidos deste inseto. Portanto, os achados descritos neste trabalho são restritos ao músculo de voo. No entanto, sabemos que o metabolismo mitocondrial deste tecido tem implicações para todo o inseto, por exemplo, regulando o metabolismo sistêmico de glicose através da modulação da sensibilidade à insulina nos diferentes tecidos. Assim, a intensa respiração associada à oxidação de prolina no músculo de voo das fêmeas do mosquito A. aegypti indica a importância do metabolismo deste aminoácido para o voo e dispersão, que pode ter implicações sistêmicas e mais amplas para todo o inseto, mas que precisam ser investigadas mais detalhadamente.

PORTAL BIOQMED: Qual a implicação metabólica das fêmeas do mosquito Aedes aegypti metabolizarem mais prolina que os machos para a produção de energia?

MFO: A prolina é um dos metabólitos mais abundantes na hemolinfa (o equivalente ao sangue dos insetos) do Aedes aegypti e cujos níveis são drasticamente reduzidos quando os mosquitos são estimulados ao voo. Curiosamente, diversos estudos indicam que a capacidade de dispersão das fêmeas é maior do que a dos machos e os nossos resultados mostram que a contribuição da oxidação de prolina para a respiração das fêmeas é cerca de 4.5 maior do que a dos machos. Assim é possível especular que a reduzida capacidade de voo dos machos seja consequência do limitado metabolismo de prolina neste sexo. Além disso, o metabolismo preferencial de prolina no músculo de voo das fêmeas pode evitar o uso de outros nutrientes importantes, como lipídios e açúcares provenientes da dieta, para que possam ser utilizados em outros tecidos, como o ovário, para sustentar a intensa postura de ovos das fêmeas.

PORTAL BIOQMED: Como a fisiologia mitocondrial deste inseto pode contribuir para o estudo, a prevenção e a etiologia da Dengue e da febre amarela?

MFO: Uma vez que o metabolismo muscular das fêmeas é extremamente dependente de prolina, é possível imaginar novas estratégias de controle deste inseto através da interferência no metabolismo deste aminácido. Talvez, estratégias como estas sejam mais eficientes para reduzir o voo das fêmeas de A. aegypti, o que permitirá controlar a dispersão deste inseto de maneira mais racional. Um outro aspecto é que a produção de radicais livres pela mitocôndria dos machos é maior do que nas fêmeas o que pode explicar porque eles vivem por menos tempo. Este também é um ponto interessante pois nos estimula a investigar mais profundamente a relação entre a produção mitocondrial de radicais livres e a biologia do Aedes, e quais as consequências na longevidade, na resistência a inseticidas, na reprodução e na transmissão dos vírus da Dengue, Febre amarela, etc.

PORTAL BIOQMED: Qual a sua opinião sobre os periódicos Open Access e sobre esse novo modelo de publicações científicas que permite a realização de artigos mais extensos, como este que vocês acabaram de publicar e que apresenta 8 figuras, 8 tabelas e uma vasta informação suplementar. Haja trabalho, não?

MFO: Pessoalmente acho o modelo Open Acess (OA) muito mais interessante do ponto de vista de visibilidade dos trabalhos publicados, do que nos modelos tradicionais. Além disso, tenho uma liberdade muito maior para disponibilizar a maior quantidade possível de informações para que o leitor possa ter uma ideia mais ampla do trabalho, o que não ocorre nos periódicos tradicionais por limitações de espaço. Esta foi a ideia ao submeter o nosso trabalho das mitocôndrias para a PLoS ONE. Apesar do custo para o pesquisador ser maior, o potencial de disseminação da informação é muito maior, especialmente em regiões onde o investimento em C&T e o acesso às informações científicas é restrito. Gosto particularmente dos periódicos do grupo PLoS, e sempre que possível, submeto meus trabalhos para a PLoS ONE, não somente por ser um excelente exemplo de política OA, mas também pelo profissionalismo na avaliação dos trabalhos que leva em consideração o mérito e a qualidade científica acima de tudo, sem ser influenciado pelos modismos ou tendências científicas. Sendo bem franco, cansei de receber respostas editoriais como "o trabalho é interessante, mas carece de novidade, ou está fora do escopo deste periódico". Desde 2009 quando publiquei pela primeira vez na PLoS ONE, jamais recebi uma resposta desta natureza e a minha experiência como revisor deste periódico reforça esta observação. Curiosamente, alguns pesquisadores, inclusive de grupos importantes daqui dos US, também adotaram a PLoS ONE como principal veículo de publicação dos seus laboratórios pelas mesmas razões. No entanto, infelizmente, esta percepção não é unânime no Brasil, uma vez que atores importantes da política científica nacional não compartilham deste sentimento ao encararem o modelo OA como uma "ameaça ao país". Na minha opinião, existem periódicos bons e ruins, tradicionais e OA e portanto, este novo modelo de difusão do conhecimento científico não pode ser mais ignorado. Certamente há uma dissonância entre esta percepção no Brasil e a tendência global de apoiar cada vez mais o modelo OA. Talvez, precisamente por esta razão, o crescimento quantitativo da ciência brasileira não tem sido acompanhado por um aumento qualitativo, mas prefiro deixar esta discussão para os especialistas em cienciometria.

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Recomendamos a todos a leitura do artigo original intitulado "Mitochondrial Physiology in the Major Arbovirus Vector Aedes aegypti: Substrate Preferences and Sexual Differences Define Respiratory Capacity and Superoxide Production"no site da revista inglesa através do endereço eletrônico: http://journals.plos.org/plosone/article?id=10.1371/journal.pone.0120600

Formato para citação:
* Soares JB, Gaviraghi A, Oliveira MF. Mitochondrial Physiology in the Major Arbovirus Vector Aedes aegypti: Substrate Preferences and Sexual Differences Define Respiratory Capacity and Superoxide Production. PLoS One. 2015 Mar 24;10(3):e0120600. doi: 10.1371/journal.pone.0120600. eCollection 2015. PubMed PMID: 25803027.

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