Conferência mundial sobre integridade científica coloca o Brasil no centro da discussão
Rio de Janeiro, 8 de Junho de 2015
A quarta conferência mundial sobre integridade científica (4th World Conference on Research Integrity) aconteceu aqui no Rio de Janeiro, entre 31 de maio e 3 de junho de 2015 e teve a professora e pesquisadora do IBqM, Sonia Vasconcelos, como uma das principais organizadoras do evento. Sonia coordenou as discussões mundiais do fórum junto com Melissa Anderson, da Universidade de Minnesota e Sabine Kleinert, editora do prestigioso periódico científico britânico The Lancet. A conferência aconteceu no Centro de Convenções do Hotel Windsor, na Barra da Tijuca. O comitê local da conferência também incluiu outros professores do IBqM, como Martha Sorenson, Hatisaburo Masuda e Francisco Prosdocimi, além de pesquisadores da COPPE (Edson Watanabe e José Carlos Pinto) e de outras unidades da UFRJ (IBCCF, Adalberto Vieyra; IESC, Marisa Palácios; HUCFF, José Lapa e Silva; IE, Charles Pessanha), da PUC-RS, UNIFESP, UNIFOR, CBPF e FIOCRUZ. Mais de 200 participantes brasileiros participaram da conferência, além de pesquisadores de mais de 50 países diferentes e também editores de periódicos das mais diferentes áreas de pesquisa.
Tendo como tema “Reserch Rewards and Integrity: Improving Systems to Promote Responsible Research”, as discussões focalizaram diversos temas de interesse, incluindo a desvios de conduta de cientistas, o plágio, a fabricação de dados e a retratação de artigos científicos que tenham sido produzidos com problemas. Ao longo do curso Education Track, coordenado pela pesquisadora Elisabeth Wager, chegou-se a sugerir que cerca de 5-10% dos artigos científicos apresentem algum tipo de erro. Também o erro honesto está nessa conta, ou seja, aquele realizado sem intenção de prejudicar ninguém faz parte não apenas do trabalho científico, mas também do trabalho realizado por qualquer ser humano.
O papel das instituições, das entidades de financiamento e das leis de cada país também foi discutido intensamente durante a conferência. As instituições são normalmente detentoras dos dados brutos produzidos pelos cientistas e devem liderar as investigações realizadas contra cientistas contratados por elas. As entidades de financiamento científico precisam garantir que os trabalhos que apoiam sejam realizados com ética e eficácia. E as leis dos países precisam de alguma forma prover algum retorno (reward) para incentivar a produção científica. De forma ampla, os sistemas de recompensa e avaliação da pesquisa nos mais diversos países devem procurar identificar formas mais eficazes para privilegiar a qualidade e excelência da produção científica, assim como a conduta responsável na proposição de projetos de pesquisa, na condução de suas atividades e na comunicação de resultados entre pares e para o público. O periódico The Lancet ressaltou essa questão específica em Editorial recente (http://www.thelancet.com/pdfs/journals/lancet/PIIS0140-6736%2815%2961005-4.pdf).
O pesquisador indiano Bodaruudin Abbasi criticou a política do publique ou pereça (Publish or Perish) durante um simpósio realizado ao longo da conferência. Segundo ele, a Índia tinha uma produção científica sólida e de alto peso até que os sistemas de progressão de carreiras começassem a exigir que os pesquisadores publicassem para conseguir subir de nível acadêmico nas universidades e centros de pesquisa. Antigamente, apenas as pessoas genuinamente interessadas por ciência é que publicavam artigos científicos. Recentemente, entretanto, o sistema exige que o pesquisador publique para melhorar seu salário e seu status. Isso faz com que as pessoas menos interessadas sintam-se compelidas a publicar apenas para melhorar seu nível, tomando muitas vezes o atalho da má conduta para alcançar esses objetivos. Em alguns países, o pesquisador recebe um adicional em seu salário para cada artigo que publica. E se ele está em dificuldades financeiras, isso poderia incentivar a publicação de trabalhos falsos, publicados rapidamente, apenas com o intuito de conseguir um dinheiro extra para pagar seu aluguel? Uma pergunta fica no ar: como estimular a produção científica em sistemas de pesquisa tão distintos, reconhecendo adequadamente contribuições genuínas e ao mesmo tempo desestimular condutas antiéticas na comunidade acadêmica?
O ex-diretor do IBqM, Franklin Rumjanek, considera que há muito barulho em torno da má conduta científica. Para ele, a má conduta política ainda é muito mais danosa à sociedade e pode inclusive impedir que os recursos governamentais sejam gastos em pesquisa científica genuína. Em tempo de recessão, ressaltar a má conduta de cientistas seria uma forma dar um tiro no pé? Embora o foco da conferência mundial tenha sido no papel da integridade científica na melhoria dos sistemas de ciência e tecnologia, questões sobre a má conduta continuam sendo uma preocupação global. No Brasil, Franklin sugere que devamos maximizar os esforços para celebrar a ciência e suas contribuições à sociedade, fortalecendo os aspectos éticos pertinentes de forma que fique sempre clara a importância do fomento à pesquisa como uma das prioridades da agenda política de nosso país. De fato, a conferência mundial, nas diversas articulações propostas em um longo programa de 4 dias inteiros (http://wcri2015.org/4WCRI_Program.pdf), procurou destacar alguns dos desafios que a ciência de países, incluindo o Brasil, deve enfrentar para fortalecer alguns desses aspectos éticos pertinentes.
No campo da comunicação da ciência, especificamente, o plágio parece ser um desses desafios no que se refere às publicações científicas. Há um esforço cada vez maior dos periódicos em identificar e corrigir o problema. Programas de computador, como o Turnitin e o Crosscheck, comparam os textos completos dos artigos submetidos a periódicos e são capazes de encontrar até mesmo seis meras palavras que tenham sido copiadas de outros artigos em bases de dados como o PubMed e até mesmo o Google. O software indica diretamente quais partes dos artigos foram retiradas de quais sítios, linkando diretamente para eles e facilitando o trabalho de checagem de possíveis cópias. Há frases entretanto que podem ser encontradas em milhares de artigos científicos e obviamente não caracterizam plágio, tais como: "o valor p<0.05 é estatisticamente significativo". Elizabeth Wager sugere que, para copiar mais do que seis palavras, é necessário usar aspas e citar diretamente a fonte. Isso obviamente não é um regra, já que não existe uma métrica definida para o plágio em publicações.
O auto-plágio é definido quando um pesquisador publica os mesmos dados ou as mesmas informações em diferentes periódicos, repetindo textos, tabelas e figuras. Embora seja interpretado por muitos como “o mais perdoável” dos tipos de má-conduta científica -- uma vez que o autor está apenas repetindo o que ele mesmo já falou antes -- a duplicação de publicações também pode gerar retratações de artigos. Ao longo do Education Track, sugeriu-se que: quando um autor deseja republicar um artigo em uma nova revista, ou adequá-lo para um outro público, ele não deve usar nenhuma parte de um texto já publicado e deve tentar dar um novo foco, produzir uma nova abordagem e apresentar um ponto de vista diferente sobre o mesmo tema. Tabelas devem ser reformatadas, devem ter novos dados adicionados ou estarem mais focadas em determinados aspectos. Adicionar a referência ao artigo original é imprescindível! Tudo isso para evitar que um mesmo artigo seja duplicado e que o autor possa ser culpado de realizar o auto-plágio. Neste caso não são somente questões éticas que estão envolvidas, pois muitas vezes questões de copyright definem o que pode ou não ser utilizado e os autores devem se certificar do que estão assinando quando passam os direitos de publicação de suas ideias para os periódicos científicos.
Outra discussão que aconteceu na conferência esteve relacionada à responsabilidade nos casos de má conduta científica. Quem deve tomar a responsabilidade por problemas de desvios de conduta? Primeiro devemos entender que a má conduta é identificada normalmente através de um delator (whistleblower) que entra em contato com o editor de uma revista científica acusando determinado autor de ter praticado má conduta. O que acontece é que o editor tem responsabilidade apenas pelo conteúdo da revista que edita e não tem mecanismos para punir o autor, mesmo que a má conduta tenha sido identificada com precisão -- como é o caso de imagens claramente modificadas quando observadas em zoom, com detalhes identificando a fraude. O editor, neste caso, normalmente entra em contato com o autor reportando que houve uma acusação e esperando sua defesa. Caso o erro venha a ser comprovado e tenha sido um erro honesto, o editor pode sugerir a publicação de (i) uma correção ao artigo. No caso de uma investigação, a revista pode também publicar uma (ii) expressão de preocupação (expression of concern) dizendo que tem dúvidas de que os dados deste artigo sejam verídicos. Isso aconteceu com um trabalho sobre o casamento gay publicado na revista americana Science Magazine, em Dezembro de 2014, que gerou uma discussão ao longo da conferência. Uma reportagem sobre essa discussão ganhou destaque na revista Nature (veja em http://www.nature.com/news/retracted-gay-marriage-study-debated-at-misconduct-meet-up-1.17687?WT.ec_id=NATURE-20150604), que reportou alguns aspectos da conferência mundial acontecida no Rio. Finalmente, se for comprovada a má conduta, o periódico pode realizar (iii) a retratação do trabalho, um tipo de "despublicação do artigo", onde a revista diz que não é mais responsável pelo conteúdo publicado e pede desculpas pelo inconveniente. Ter um artigo retratado é um golpe duríssimo para um pesquisador e pode manchar sua carreira para sempre. A investigação, entretanto, sobre a conduta do pesquisador é um papel que deve ser assumido principalmente pela instituição da qual ele faz parte, não sendo tarefa do editor, da revista ou mesmo do delator.
O jornalista Ivan Oransky, um dos criadores do sítio Retraction Watch (http://retractionwatch.com/), apresentou também uma conferência em que relatava a importância da criação de um banco de dados de artigos retratados, uma vez que 31.8% dos artigos que tenham sido "despublicados" não apresentam sequer a informação sobre isso no sítio das revistas. Ele sugere que muitos editores de periódicos científicos pensam diversas vezes antes de realizar uma retratação de um artigo, já que isso significaria que eles não teriam feito seu próprio trabalho com o rigor e o cuidado necessários. Assim, na leitura de muitos, a retratação também poderia refletir negativamente para os periódicos. Por outro lado, é interesssante notar que as revistas de maior visibilidade, como Science, Nature e Cell têm os maiores índices de retratação, indicando que estão trabalhando com responsabilidade e atentas sobre a correção da literatura publicada indevidamente.
O físico inglês Philip Moriarty alerta para esse tempo de mídia bombástica onde vivemos, onde a manchete do artigo parece ser mais importante do que seu rigor científico. Ele aponta sítios como o PubPeer (https://pubpeer.com/), onde qualquer artigo que contenha um DOI pode ser revisado, criticado, elogiado e analisado por autores e pesquisadores de qualquer parte do mundo. Inspirado pela conferência, o professor do IBqM, Olavo Amaral, também sugeriu a utilização do site PubMed Commons (http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmedcommons/), que também permite o debate científico de artigos publicados na base de dados Pubmed. Segundo Olavo, seria interessante incentivar que os Journals de cada laboratório publicassem, nessa base de dados, suas avaliações, críticas, sugestões e elogios de artigos discutidos internamente, de forma que esses comentários possam ficar documentados e publicamente disponíveis. Ivan Oransky, do Retraction Watch, chamou esses sistemas como o PubPeer e o PubMedCommons de "revisão por pares pós-publicação" (post-publication peer-review) e ressaltou a importância cada vez maior deles.
Finalmente, a Profa. Sonia Vasconcelos apresentou as primeiras etapas de uma análise que é possivelmente a maior pesquisa sobre plágio já conduzida em todo o mundo. Com o financiamento e a colaboração do CNPq, Sonia e colaboradores, que incluem os professores do IBqM, Martha Sorenson, Hatisaburo Masuda, Jacqueline Leta e Francisco Prosdocimi, foi possível realizar um questionário sobre plágio, auto-plágio e redundância na pesquisa acadêmica, enviada para mais de 140.000 pesquisadores doutores brasileiros, tendo obtido aproximadamente 27.000 respostas. Em fase inicial de análise, Sonia agora será capaz de verificar como os pesquisadores brasileiros das mais diversas áreas percebem essas questões e lidam com elas na comunicação da pesquisa. Sendo o plágio considerado um dos problemas mais sensíveis no campo da integridade científica em publicações, o estudo em curso deve ajudar a aprofundar a abordagem sobre o tema no contexto nacional e internacional. Ainda sobre o tema, a doutoranda do PEGeD/IBqM, Christiane Coelho dos Santos,foi agraciada com o prêmio Excellence in Doctoral Research on Research Integrity Award, concedido pelo UK Wellcome Trust, (http://wcri2015.org/program/doctoral-forum.html), na sessão do Doctoral Forum. Christiane Santos e outros 3 contemplados foram considerados igualmente merecedores, cada um em categoria específica.
Enfim, a conferência foi extremamente exitosa em promover um grande leque de discussões sobre a integridade da ciência e do cientista, trazendo para o Brasil os maiores nomes da área, reunindo olhares e perspectivas sobre a temática advindos de sistemas de pesquisa de todos os continentes. Isso ajuda a nos projetar, de forma definitiva, no mapa dos países verdadeiramente interessados em produzir ciência impecável no ponto de vista da qualidade, da ética e da integridade.
O IBqM está orgulhoso em ter feito parte fundamental desse processo e parabeniza a todos os participantes e organizadores de nosso instituto por terem feito história ao trabalharem para sediar essa importância conferência em nosso país e em nossa cidade maravilhosa.
-- Por Francisco Prosdocimi, com a colaboração de Sonia Vasconcelos e Lina Zingali