09 de abril de 2013

Ancestralidade comum e o tribalismo

Francisco Prosdocimi discute enganos conceituais presentes em canções da música popular brasileira.

Por Francisco Prosdocimi

O tribalismo

Há algum tempo, três ícones da música brasileira se reuniram e criaram um movimento, ou um anti-movimento como dizem em alguma de suas músicas: o Tribalismo. Marisa Monte, Carlinhos Brown e Arnaldo Antunes produziram música brasileira e arte da melhor qualidade. Colaboradores de longa data, os três foram capazes de produzir o CD Tribalistas em tempo recorde e fizeram grande sucesso nas rádios. Gostei particularmente da faixa número 13 do CD, que escuto nesse momento, intitulada exatamente “Tribalismo”. A letra e a melodia são bastante agradáveis, a filosofia tribalista é interessante, moderna, inteligente. Foi somente depois da terceira ou quarta vez que escutei a música que percebi um erro conceitual na letra, motivo pelo qual escrevo o presente ensaio.

“Os tribalistas já não querem ter razão não querem ter certeza não querem ter juízo nem religião”

Bem, se os tribalistas não querem ter razão, isso pode ser considerado um ponto positivo a meu favor, posto que facilita a abordagem corretiva que pretendo apresentar aqui. Realmente eles não têm razão em uma parte da letra posterior a essa frase inicial. O erro encontrado é bastante comum; um erro evolutivo que, como geneticista, tenho a obrigação e o prazer de esclarecer.

Vejam a frase a seguir: “Um dia já fui chimpanzé agora eu ando com o pé Dois homens e uma mulher Arnaldo, Carlinhos e Zé”

À primeira vista poderíamos pensar que o erro se encontre nos nomes dos tribalistas. Definitivamente, não me parece que “Arnaldo, Carlinhos e Zé” sejam realmente “dois homens e uma mulher”. Isso me incomodou à primeira vista. Pensei que os tribalistas tivessem alterado o nome do componente feminino do grupo justamente para fazer uma rima que tornasse a música mais agradável e adicionado uma única sílaba que fizesse a música respeitar a prosódia. Afinal, uma frase “Arnaldo, Carlinhos e Marisa” não cairia muito bem...

Foi pesquisando na internet para escrever o presente texto que encontrei a informação de que Zé parece ser realmente um apelido da Marisa Monte, algo como um diminutivo de Marisete: Zé. Seja qual for o motivo: verdadeiro apelido ou verdadeira melodia, não é isso que gostaria de discutir aqui.

O principal motivo pelo qual estou aqui é tentar explicar melhor a frase “Um dia já fui chimpanzé”. Primeiramente gostaria de parabenizar os tribalistas por acrescentarem uma frase mostrando o pensamento evolutivo em uma de suas músicas: é realmente importante tentar educar através da música e sabemos como a cultura brasileira ainda é, em grande parcela, uma cultura oral. Somos, de fato, pouco letrados. Bem, infelizmente nossos ídolos musicais foram infelizes exatamente nessa frase.

O darwinismo

A teoria da evolução por seleção natural foi proposta por Charles Darwin em 1859 e permanece, em seus aspectos mais básicos, a mesma vigente até hoje. Novas descobertas foram feitas e acrescentaram novas informações que corroboraram e tornaram ainda mais confiáveis as idéias evolutivas propostas pelo inglês.

A evolução mostra que todos os organismos existentes hoje em nosso planeta derivam de um único ancestral comum. Segundo um dos mais importantes filósofos da biologia do século XX, o ornitólogo Ernst Mayr, a ancestralidade comum é uma das cinco sub-teorias de Darwin. Mayr considera que o darwinismo é na verdade uma mescla de cinco grandes ideias, sendo que a mais clara e mais prontamente aceita pelos biólogos de sua época foi, justamente, a ancestralidade comum. Essa subteoria de Darwin tem um caráter explicativo e intelectual enormes e explicaram sem a necessidade de nenhum outro argumento, a própria existência e evolução de todos os organismos vivos presentes na Terra.

Vamos tentar entendê-la, então.

Ao compararmos dois organismos entre si, sejam eles animais, vegetais ou microorganismos, a teoria da ancestralidade comum sugere que devemos supor a existência de um ser vivido no passado que teria sido o ancestral comum entre eles. O ancestral comum é um ser vivo do passado que teria as formas genéticas e comportamentais básicas que teriam dado origem às espécies modernas. Ancestrais comuns podem ser mais recentes ou mais antigos, dependendo das espécies que se compara. O ancestral comum, por exemplo, entre humanos e chimpanzés é mais recente do que o ancestral comum entre humanos e baleias, ou entre humanos e cachorros. E isso significa que os humanos são “parentes mais próximos” dos chimpanzés do que das baleias ou dos cães.

Entretanto isso não significa que algum dia tenhamos sido, efetivamente, iguais aos chimpanzés, às baleias ou aos cães. E não fomos, queridos Tribalistas. Veja a figura abaixo:

tribalistas

Até um certo momento, a história evolutiva de homens e chimpanzés era a mesma (ponto amarelo). A partir de um determinado momento, entretanto, uma população de uma espécie ancestral, que não era nem chimpanzé, nem humana, separou-se. Por algum motivo, os membros dessa população ancestral foram divididos. Os membros de uma subpopulação A dessa população ancestral seguiram pra um lado e outros de uma subpopulação B seguiram para outro. Desse momento em diante a população ancestral nunca mais foi a mesma.

É possível supor que os membros da subpopulação A tenham se dirigido para um determinado ambiente que os tenha selecionado para determinadas características específicas, enquanto os membros de B tenham ficado para outro ambiente que exigia ou privilegiava outras características adaptativas. Mutações genéticas aleatórias aconteceram em membros da subpopulação A e da subpopulação B e aquelas que não eram ruins ou deletérias foram escolhidas diferentemente por meio da seleção natural para serem mantidas em cada uma das populações. Os traços vermelhos na figura representam as mutações que aconteceram na subpopulação que deu origem aos chimpanzés e os traços verdes representam aquelas que aconteceram na subpopulação que teria dado origem à linhagem humana.

Depois de milhares de anos acumulando mutações diferentes que foram selecionadas diferentemente pelo ambiente em questão, a população ancestral foi se modificando até o ponto em que os organismos oriundos das populações A e B não eram mais capazes de se reproduzir dando origem a prole fértil. Nesse momento, o biólogo define: as espécies são diferentes.

Conclusão

Dessa forma podemos entender que, ao contrário do que dizem os tribalistas, nós humanos jamais fomos chimpanzés. Apenas dividimos com eles um ancestral comum recente no passado. Vale dizer, inclusive, que as mais recentes estimativas baseadas em idades de fósseis e decaimento radioativo indicam que esse ancestral habitou a Terra há cerca de 6.3 milhões de anos atrás. Além disso, precisamos perceber que nós nunca “fomos”, oficialmente, nenhuma das espécies existentes em nosso planeta hoje e sim temos ancestrais comuns com todas elas, inclusive com a lombriga. E esses ancestrais se modificaram em maior ou menor grau para gerar a nossa própria espécie ou qualquer outra que se deseje analisar.

Isso significa também que não há como alterar a letra da música para torná-la correta. O início da frase “Um dia já fui ...” não permite que coloquemos o nome de nenhuma outra espécie existente hoje que permita tornar a música, digamos, "cientificamente correta". E imagino que os tribalistas não estejam também muito interessados nisso... eles nunca quiseram ter razão, certeza, juízo ou religião.

Talvez, entretanto, pudéssemos acrescentar alguma característica no lugar de “chimpanzé” para tentarmos montar uma versão correta para a deliciosa canção. Que tal algo como "unicelulares"? Se a frase fosse “Um dia já fui unicelular”, ela estaria cientificamente correta, mas atrapalharia a rima e a prosódia. Deixo então para você, leitor, a tarefa de encontrar alguma característica que caiba exatamente no lugar de “chimpanzé” e que torne a canção tão bela e elegante quanto ela é agora, mesmo que teoricamente capenga. Talvez você possa um dia encontrar com algum dos tribalistas e sugerir esta modificação na letra. Pé em deus e fé na taba!

triba
Escute a canção no Youtube!

 

Francisco Prosdocimi
Instituto de Bioquímica Médica,
Universidade Federal do Rio de Janeiro
prosdocimi @ bioqmed.ufrj.br

Aviso

Todo o conteúdo publicado no texto acima é de responsabilidade do seu autor.

Sobre o autor Francisco Prosdocimi

Francisco Prosdocimi Biólogo, Mestre em Genética, Doutor em Bioinformática. Trabalha com montagem e anotação de genomas animais, genômica e transcriptômica comparativa, filogenômica e genética de ...